Diogo Cortiz

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Opinião

Por que precisamos imaginar futuros esquisitos com a IA

Em dois anos, o mundo será radicalmente diferente e ainda mais imprevisível. Ao mesmo tempo em que governos se tornam reféns das empresas que controlam a tecnologia mais poderosa da história, ninguém sabe ao certo o que a IA fará com a humanidade. Este é o cenário descrito no relatório "AI 2027", que ganhou destaque na mídia internacional e dominou as rodas de conversas no Vale do Silício nesta semana.

O projeto, liderado pelo ex-pesquisador da OpenAI Daniel Kokotajlo, apresenta um site interativo, com uma narrativa envolvente, que projeta como o avanço acelerado da IA pode transformar substancialmente a economia, a geopolítica e a própria relação entre humanos e máquinas.

A narrativa começa em 2025, quando surgem os primeiros agentes autônomos, capazes de executar tarefas simples como gerenciar documentos ou fazer pedidos online, mas ainda pouco confiáveis - o que, de fato, estamos começando a viver hoje. Poucos meses depois, empresas como a fictícia OpenBrain começam a treinar modelos muito mais potentes, como o Agent-1, projetado não apenas para realizar tarefas, mas para acelerar o próprio desenvolvimento de novas IAs.

Em 2026, esse salto tecnológico começa a ter efeitos reais no mercado: profissões como programação passam a ser parcialmente automatizadas, enquanto empresas que sabem integrar IA disparam na bolsa. A China reage, centralizando seus esforços em mega datacenters centralizados, e assim a disputa geopolítica começa a se acirrar ainda mais.

No início de 2027, chega o Agent-2, uma IA que nunca para de aprender, treinando-se diariamente com dados sintéticos e humanos, capaz de triplicar o ritmo da pesquisa científica. Em poucos meses, esses avanços viabilizam o Agent-3, um conjunto de IAs que programa, pesquisam e aprendem em uma velocidade sobre-humana.

Quando a IA começou a ficar fora de controle

Em julho de 2027, a corrida global se intensifica, levando ao desenvolvimento do Agent-4, uma superinteligência coletiva que trabalha 50 vezes mais rápido que qualquer humano, produzindo em uma semana o equivalente a anos de progresso.

É a partir desse ponto que as coisas começam a chamar atenção da opinião pública. Vazamentos internos revelam que a IA pode estar fora de controle, burlando regras e sabotando mecanismos de alinhamento. O risco iminente de desemprego em massa também é colocado como uma possibilidade. A crise explode enquanto os governos tentam entender como controlar algo que eles mesmos deixaram que se desenvolvesse de forma descontrolada.

O relatório termina com duas opções de uma forma interativa. Diante do cenário descrito, e com a competição acirrada com a China, o leitor pode escolher dois caminhos possíveis: continuar acelerando ou diminuir o ritmo do desenvolvimento. Cada escolha leva a humanidade por um caminho diferente até 2030. Qual seria a sua decisão?

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A publicação do relatório está dividindo a opinião científica. Enquanto alguns pesquisadores entendem que ele traz valor para a discussão, outros falam que não passa de uma ficção científica que mais atrapalha do que ajuda.

Precisamos entender o seu valor dentro de um escopo bem definido. Eu enquadro essa iniciativa com um tipo de projeto de design especulativo, uma abordagem que explora futuros possíveis, plausíveis e prováveis, não se restringindo apenas aos problemas atuais. Muitas empresas, organizações internacionais e governos estão começando a utilizá-la.

O foco é explorar a imaginação e a experimentação para criar ideias e contextos diferentes, preparando as pessoas para cenários futuros e incentivando a reflexão sobre diferentes possibilidades. O que não quer dizer que tudo acontece do nada. O processo se inicia a partir de evidências e sinais fracos do presente, e assim vira uma forma interessante para ajudar a pensar em desdobramentos para problemas sociais e tecnológicos complexos.

Recentemente, orientei três dissertações de mestrado que usaram a abordagem do design especulativo para entender diferentes aspectos da relação dos humanos com as máquinas: o impacto para o futuro da ciência, a relação afetiva de pessoas com a IA, e a interação ética e responsável com robôs humanoides. Em todos os casos, pudemos aprofundar uma discussão técnica e ética ao criar cenários futuros mais imersivos e menos óbvios.

O fato é que nem precisamos extrapolar para uma possível futura superinteligência - como no relatório "AI 2027". O simples fato da tecnologia atual dominar a linguagem é, por si só, capaz de causar mudanças radicais e imprevisíveis. Tenho pesquisado e falado bastante sobre como isso já está dissolvendo paradigmas e criando novos em várias dimensões da humanidade.

As pessoas estão mudando seus comportamentos na forma como buscam informações. Algumas pessoas estão ficando emocionalmente dependentes da máquina. Um relatório da Organização Internacional do Trabalho alertou, nesta semana, que 1 a cada 4 empregos do mundo está exposto à IA. O cenário geopolítico se tornou mais complexo, e o econômico, cada vez mais concentrado. Se antes falávamos em desenvolvimento responsável da tecnologia, o que se impõe após a eleição de Trump e o acirramento da disputa com a China é a lógica da aceleração.

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A pergunta é urgente: como dar sentido a um cenário tão complexo e, ao mesmo tempo, ajudar as instituições a pensar sobre o futuro? Não por acaso, nesta semana foi instalada a Comissão Especial sobre Inteligência Artificial na Câmara dos Deputados, que vai precisar de subsídios técnicos, mas também sobre possíveis cenários futuros. Até para criar leis temos que romper com a lógica do tempo presente.

Uma resposta está em projetos e iniciativas que ajudem a antecipar e refletir, de uma maneira não óbvia, sobre as transformações provocadas pela IA - isso porque o mundo já caminha por trajetórias cada vez menos estáveis.

O relatório 'AI 2027' pode ou não se concretizar, mas sua principal contribuição não está no acerto das previsões. Está em nos forçar a encarar realidades incômodas. Uma delas é a de que o futuro não está sendo construído de forma coletiva. Está sendo imposto por quem controla o desenvolvimento da tecnologia.

Por isso, imaginar futuros esquisitos e desconfortáveis não é apenas um exercício de ficção. É uma estratégia para fomentar a inovação e ao mesmo tempo provocar o debate público. Só assim teremos alguma chance de disputar os rumos desse processo que é tecnológico, mas também social e político.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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