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Carlos Affonso Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Telegram ataca PL das Fake News e provoca poderes; como chegamos até aqui?

Telegram usou linguagem exagerada para criticar o projeto de lei das fake news - Dado Ruvic/Reuters
Telegram usou linguagem exagerada para criticar o projeto de lei das fake news Imagem: Dado Ruvic/Reuters

10/05/2023 14h20

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O Telegram atravessou o samba. A nota da empresa contra o projeto de lei nº 2630/20 (chamado de "PL das Fake News") apareceu justo quando o PL havia sido tirado de votação no plenário da Câmara e passava por necessários ajustes.

Ao usar uma linguagem exagerada, como "a democracia está sob ataque", a empresa acaba minando o debate técnico e fazendo a discussão retroceder à polarização entre os que acham que o PL vai acabar com todo o mal na internet e aqueles que enxergam no texto apenas um instrumento de censura governamental.

Vale entender como chegamos até aqui.

No dia 2 de maio, o plenário da Câmara dos Deputados se preparou para votar o PL2630. De lado a lado do espectro político parecia que qualquer resultado seria apertado.

No final de semana anterior, o Fantástico havia exibido uma reportagem mostrando vídeos desconcertantes que estavam rodando no Discord, fomentando uma onda de apoio nas redes ao PL2630 como forma de proteger as crianças nas plataformas digitais.

Ao mesmo tempo, políticos começaram a alegar que o PL2630 iria impedir a postagem de versículos da Bíblia nas redes, concluindo que o projeto feria a liberdade de expressão e de religião.

Ambos os argumentos, tanto a favor como contra o PL, estavam mais preocupados em despertar sentimentos profundos na sua audiência do que efetivamente dialogar com o texto do projeto de lei.

O PL2630 trata de uma miríade de temas que em nada se relacionam com a proteção de crianças, como:

  • Remuneração de conteúdo jornalístico,
  • Pagamento de direitos autorais, Protocolo de segurança,
  • Risco sistêmico,
  • Imunidade parlamentar nas redes.

E o Discord, vale lembrar, nem mesmo é alcançado pelo PL, já que as suas regras só valem para empresas com mais de 10 milhões de usuários mensais no Brasil.

Por outro lado, sobre os versículos da Bíblia, não há nada no projeto que coloque em risco a sua publicação.

Tudo indica que o elemento religioso mais serviu para chamar a atenção e mobilizar a oposição contra o PL.

As big techs entram em cena

O dia da votação raiou com um alvoroço nas redes.

  • A Meta publicou um texto contrário ao PL em seu blog corporativo
  • A Google colocou um aviso dizendo que o PL2630 iria piorar a internet logo abaixo da sua chave de busca (além de anunciar contra o projeto em jornais e em plataformas de podcast)
  • E começaram a aparecer alegações de que conteúdos favoráveis ao PL tinham recebiam menos visibilidade nas redes sociais.

Isso gerou uma investigação por parte do Ministério Público Federal, com foco em abuso do poder econômico por parte das plataformas.

Uma empresa tem o direito de ser contra um projeto de lei e de divulgar a sua opinião. Isso não transforma essa manifestação em editorial de jornal ou publicidade de produto ou serviço.

Mas a opinião deve ser transparente sobre sua natureza e não usar soluções de design que levem à confusão.

Pouco tempo depois, o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou que a Secretaria Nacional do Consumidor considerou que a conduta da Google configurava "publicidade enganosa e abusiva", obrigando a empresa a publicar em até duas horas uma contrapropaganda informando os consumidores sobre "o interesse comercial da empresa" na reprovação do PL e impondo multa de R$ 1 milhão por hora de descumprimento.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, também entrou no circuito.

A partir do chamado inquérito das fake news, ele determinou que Meta, Google, Spotify e Brasil Paralelo removessem qualquer texto ou anúncio que promovesse ataques ao PL2630.

O ministro também ordenou que a Polícia Federal colhesse depoimento dos presidentes das empresas.

Um raio-X da derrota na Câmara

Toda essa movimentação parecia contribuir para a votação do projeto no plenário da Câmara.

De certa forma, existia um alinhamento entre a cúpula dos três poderes.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), havia dito que o comportamento das empresas de tecnologia era "desumano", como se quisessem impedir o funcionamento do Poder Legislativo.

O governo federal e o Supremo Tribunal Federal haviam acabado de agir contra a tomada de posição das plataformas.

Ainda assim, o PL2630 não encontrou forças para ser votado no plenário da Câmara.

A oposição conseguiu reunir um número expressivo de votos contra o texto. O relator do PL, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), pediu a retirada do texto da votação e prometeu fazer novos diálogos para viabilizar a sua apreciação.

Não tardou para que esse resultado sacramentasse uma união entre o bloco de oposição ao governo e as empresas de tecnologia.

Aqui vai uma opinião:

  • Por mais que não se possa dissociar a escalada da extrema-direita na última década do papel desempenhado pelas redes sociais em formar bolhas e amplificar discursos, esse casamento que se formou no Congresso brasileiro logo na largada do Governo Lula é um casamento de ocasião.

A derrota do governo no plenário da Câmara deu a impressão de que as grandes empresas de tecnologia estão alinhadas com o bloco de oposição (que vai além da extrema-direita, claro) e que assim pautas sobre regulação da rede não vão passar no Congresso.

Ledo engano.

O PL2630 enfrentou tamanhas dificuldades não apenas em razão de posicionamentos políticos, mas também porque ele já trata de um tema que inspira divisões e, nos últimos anos (e semanas), tratou de ir acrescentando novos assuntos, tornando o consenso ainda mais difícil.

Não se espante se, quando tramitar um projeto de lei dedicado à proteção de crianças nas redes sociais, esse mesmo bloco que se mobilizou contra o PL2630 junto com as empresas de tecnologia votar em peso pela sua aprovação.

De volta para as pranchetas

A retirada do PL2630 de votação abriu importante janela para que o texto do projeto fosse aperfeiçoado.

Rapidamente surgiu a informação de que os trechos sobre remuneração de conteúdo jornalístico e pagamento de direitos autorais seriam retirados.

Essa modificação, por si só, facilitaria o debate e permitiria que se ganhasse tempo na análise de temas que são centrais no projeto, como:

  • A imunidade parlamentar,
  • O regime de responsabilização das plataformas,
  • Os processos de moderação de conteúdo,
  • A entidade fiscalizadora.

Sobre esse último assunto, o deputado Orlando Silva já havia retirado do texto a previsão sobre um ente autônomo de fiscalização, que havia sido identificado como uma espécie de "ministério da verdade" por críticos do projeto.

Nesse vácuo, aumentou a pressão para que uma entidade já existente assumisse o papel de fiscal da futura lei, com a Anatel sendo bastante vocal sobre o seu interesse.

Foi nesse contexto, com tantas discussões importantes pela frente, que o Telegram soltou uma nota contra o PL e todo o clima de polarização do dia da votação voltou com força total.

O que quer o Telegram

A nota, publicada no canal Telegram Brasil, afirma que o PL:

  • "Concede poderes de censura ao Governo",
  • "Transfere poderes judiciais aos aplicativos" e,
  • "Cria um sistema de vigilância permanente".

Ao final, diz que é por esses motivos que "Google, Meta e outros se uniram para mostrar ao Congresso Nacional do Brasil a razão pela qual o projeto de lei precisa ser reescrito."

Google e Meta publicaram nota negando participação no manifesto do Telegram.

O texto do Telegram até joga luz sobre temas importantes do PL, mas na maior parte das vezes o faz de modo exagerado, quase caricato.

Além disso, vale se questionar a pertinência desse texto aparecer justo quando se procurava acertar as arestas (que não são poucas) do PL2630 para viabilizar a sua votação.

Aqui podemos fazer duas especulações:

  • A primeira é que o timing errado da carta talvez não seja fruto de um atraso involuntário, mas sim parte da estratégia. Para quem não interessa a atualização das regras sobre internet no Brasil, parece um bom negócio trocar a discussão sobre aperfeiçoamentos do PL2630 por mais um round de bate-boca provocado por uma nota inflamatória.
  • A segunda é que talvez a nota não venha para oferecer subsídios para o debate, mas sim para renovar a mobilização contrária ao PL, que poderia ter se desorganizado após a vitória da semana passada.

Nesse cenário, a nota do Telegram aumenta de forma considerável o risco de que o Supremo Tribunal Federal, através de dois casos que aguardam julgamento, resolva traçar as diretrizes da regulação das redes por via judicial.

Em entrevista sobre o compasso de espera que haveria entre STF e Congresso no deslinde do tema, o ministro Dias Toffoli já disse que "o tempo da política e o tempo da Justiça são diferentes".

Por isso, ao soltar nota contrária ao PL2630 com tintas fortes, o Telegram pode ter atravessado o samba.

Para mobilizar as bases ela acaba provocando as autoridades, dificulta o debate sobre aperfeiçoamentos do PL, e de quebra, pode ter dado a senha para que o STF não deixe o samba morrer.