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Carlos Affonso Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Querida, encolhi os dados': Inep distorce LGPD e prejudica a educação

Inep encolheu o volume de informações disponibilizadas do Enem e do Censo Escolar da Educação Básica  - iStock
Inep encolheu o volume de informações disponibilizadas do Enem e do Censo Escolar da Educação Básica Imagem: iStock

23/02/2022 04h00

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O filme "Querida, Encolhi as Crianças!", sucesso de 1989, acaba de ganhar mais uma sequência. Na sua versão original, Wayne Szalinski, um cientista frustrado, vivido por Rick Moranis, inventa uma máquina que acidentalmente encolhe seus filhos (e os dos vizinhos).

Na última sexta-feira (18), ao divulgar os microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020 e do Censo Escolar da Educação Básica 2021, o Inep encolheu o volume de informações disponibilizadas. Na ausência de uma geringonça típica dos filmes dos anos 80, a culpa recaiu na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Pesquisadores acostumados a ter nessas bases o seu principal instrumento para compreender a realidade da educação no Brasil protestaram, já que o sumiço dos microdados pode impossibilitar ou dificultar uma série de análises, como o impacto da pandemia nas atividades educacionais.

O que mudou? No caso do Enem sumiram informações sobre a escola em que a pessoa —que não é identificada— estudou, além de seu município de nascimento e de residência. Também desapareceram informações sobre acessibilidade do aluno (como requisições de cadernos de prova com letras grandes). A alegação é que esses dados poderiam levar à reidentificação da pessoa.

Já no Censo, a forma de apresentação das informações foi bastante alterada, não mais sendo divulgadas informações sobre escolas, alunos, docentes, gestores e turmas. Agora as informações estão aglutinadas por escola e são em menor número do que o existente em versões passadas.

Sem essas informações, várias análises sobre o estado da educação no país ficam prejudicadas. Qual o impacto de diferentes demandas por acessibilidade no resultado dos estudantes brasileiros? Como comparar as diferenças entre a educação na zona urbana e na zona rural? São perguntas que o encolhimento de dados torna mais difícil (ou mesmo impossibilita).

Não é a primeira vez que o governo se vale da LGPD para reduzir a transparência de informações que deveriam ser públicas. Ela já foi usada para não divulgar relatórios sobre trabalho escravo e para ocultar o registro de visitantes no Planalto e no Palácio da Alvorada.

O uso da LGPD como argumento para reduzir sensivelmente as informações do Enem e do Censo é duplamente equivocado: ou se assume que esses dados eram anonimizados (e com isso não se aplica a LGPD, que exclui esses dados da sua alçada), ou se aplica a LGPD e algumas das suas bases legais que permitem a divulgação desses dados (como a execução de políticas públicas).

A LGPD define dado anonimizado como o "dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento" (art. 5º, III).

Em seguida, a LGPD afirma que esses dados "não serão considerados dados pessoais para os fins desta Lei, salvo quando o processo de anonimização ao qual foram submetidos for revertido, utilizando exclusivamente meios próprios, ou quando, com esforços razoáveis, puder ser revertido" (art. 12).

Sendo assim, a mudança realizada pelo Inep parece indicar que o instituto não estava confortável com o seu padrão de anonimização e que os dados, podendo ser reidentificados, gerariam uma violação da LGPD.

Acontece —e aqui entra o segundo argumento— que a própria LGPD possui bases legais que permitem a divulgação desses dados. O art. 7º, IV, permite o tratamento de dados "para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais".

O mesmo artigo, no inciso III, permite o tratamento de dados "pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres (...)"

O próprio Inep, em página específica sobre LGPD, informa que "os dados também poderão ser liberados nas hipóteses de tratamento para a execução das competências constitucionais e regimentais do Inep e de compartilhamento com órgãos ou entidades para a execução de políticas públicas."

Diferente do ocorrido no filme com a estranha máquina do doutor Wayne Szalinski, o caso do encolhimento de dados pelo Inep não foi um acidente. A decisão por limitar os microdados da educação impacta significativamente o trabalho de pesquisadores e de gestores educacionais. O uso da LGPD como argumento para esse resultado não é apenas equivocado, é inconstitucional.

Se é verdade que a única solução para o Brasil é a educação, agora vamos precisar de uma lente de aumento para encontrá-la.