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Carlos Affonso Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Facebook: apagão de notícia mostra que disputa na Austrália impacta a todos

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Imagem: Getty Images

18/02/2021 17h23

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O cinema ensina: depois de um apocalipse nuclear, é cada um por si. Na luta pela sobrevivência não existe outra lei que não seja a do mais forte.

Depois de meses de negociação no Parlamento australiano, tudo indica que está prestes a ser votado o código que vai obrigar grandes plataformas, como Google e Facebook, a pagar pelo uso de links que apontem para conteúdo jornalístico em suas ferramentas.

Em síntese, o novo código determina que, caso as partes não cheguem a um acordo sobre o valor a ser pago pelo uso de links jornalísticos, uma arbitragem compulsória será criada. Como já era de se imaginar, as empresas de tecnologia não se sentiram confortáveis com esse arranjo, até porque o precedente australiano deve ser exportado para outros países. O que acontece na Austrália não fica na Austrália.

Em resposta, o Google fechou ontem (17) um acordo de "valores significativos" com a News Corp, de Rupert Murdoch, para continuar a exibir links para conteúdos jornalísticos. Já o Facebook acionou a opção nuclear e removeu nesta quinta (18) links jornalísticos de sua plataforma na Austrália.

Soluções extremas geram resultados extremos.

O código em si é bem-intencionado. Nas últimas décadas, a relação entre as big techs e os veículos de imprensa foi marcada por certa assimetria. Quanto mais Google e Facebook incorporam links em suas plataformas, mais atrativos se tornam os seus serviços.

A pesquisa da Google se consagra como ponto de partida para uma busca que inclua conteúdos noticiosos, enquanto no Facebook é possível compartilhar um conteúdo jornalístico e gerar uma discussão com amigos e inimigos. Esse movimento fez com que anunciantes migrassem de empresas de jornalismo para as plataformas digitais.

É preciso reconhecer que tanto Facebook como Google vinham buscando soluções alternativas que não os vinculassem a uma arbitragem compulsória na Austrália. Ambas as empresas criaram recentemente projetos dedicados a conteúdo jornalístico, como a News Tab e a News Showcase, respectivamente.

O problema é que a solução aventada na Austrália pode não ser a resposta. Ela não só não resolve a crise do jornalismo, como também pode incentivar ainda mais a concentração nesse mercado, acirrar as relações entre big techs e governos, além de subverter uma regra de ouro da World Wide Web: a liberdade de "linkar".

Da forma como está, o código não permite que o painel arbitral chegue a um meio-termo sobre os valores devidos, devendo decidir pela quantia oferecida pelas empresas de tecnologia ou aquela cobrada pelos veículos de imprensa locais. A tendência em se seguir com a segunda opção pode fazer com que os valores disparem mundo afora.

O que é notícia?

O banimento dos links para notícias no Facebook australiano não poderia ter vindo em pior momento, já que o mundo todo enfrenta a crise da covid-19. Ao mesmo tempo, links tão distintos como do serviço de meteorologia, de entidades da sociedade civil e de sites de humor foram igualmente bloqueados na plataforma.

Facebook has banned WA's Department of Fire and Emergency Services from posting emergency bushfire warnings - in the middle of summer. @dfes_wa pic.twitter.com/zhBLq3K7oc

-- Peter Law (@PeterJohnLaw) February 17, 2021

Ficou evidente que definir o que é link para conteúdo noticioso não é uma tarefa trivial. De certa maneira, o caos instalado na plataforma serviu para demonstrar que a web é uma rede de hyperlinks e que criar regimes jurídicos distintos para diferentes links pode ir contra a própria natureza da rede.

Vale destacar que uma coisa é o link em si e que outra é o conteúdo que se acessa através dele. Restrições de acesso ao conteúdo e responsabilidades pelo mesmo não se comunicam com o link em si, que precisa ser livre para a própria web funcionar. Talvez você não consiga ler uma matéria de um jornal sem ser assinante, mas nada impede que você copie e cole o link como bem entender.

Essa "neutralidade do link" vem sendo atacada nos últimos anos. Tribunais europeus começaram a responsabilizar quem copia e cola um link sabendo que o seu destino é um conteúdo ilícito. O código australiano, por sua vez, passaria a criar a seguinte dúvida na hora de copiar e colar um link: será que esse link é para conteúdo jornalístico? Em caso positivo um regime jurídico (e econômico) todo diferente passa a ser aplicável. A mesma discussão apareceu na revisão das regras sobre direito autoral na Europa em 2019.

Quem diz o que é um link para conteúdo jornalístico? Qual entidade ficará encarregada de solucionar os casos nebulosos? Qual impacto isso terá em diferentes plataformas, que podem simplesmente optar por não permitir links para conteúdos de empresas jornalísticas com as quais não se fechou um acordo? Como isso favorece grandes empresas de mídia que vão conseguir fechar grandes acordos com grandes empresas de tecnologia?

Se o Facebook queria demonstrar como é complicado decidir o que é e o que não é link para conteúdo jornalístico —e sendo assim o código australiano teria um problema em seu próprio DNA— a missão foi alcançada. Resta saber qual será o preço desse experimento.

Governos pelo mundo afora vão começar a interpretar o bloqueio efetuado pela empresa na Austrália como um desafio à soberania de um país para decidir as suas próprias leis. "Se lembra do que aconteceu na Austrália?" pode rapidamente virar um mantra justo quando Estados começam a despertar para a importância da chamada soberania digital.

A adoção de medidas nucleares na Austrália vem gerando distopias sobre o futuro desde os anos oitenta. Vamos torcer para que dessa vez o resultado seja diferente daquele retratado nos filmes da franquia Mad Max, que se passa em uma Austrália arrasada pela guerra nuclear e na qual a humanidade vive em busca de recursos básicos como alimento, combustível e informação.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL