Contos de fadas podem ser antídoto para educação conformista e controlada
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Quem pensa que Chapeuzinho Vermelho, A Bela e a Fera ou Os Três Porquinhos são histórias datadas e presas a formas antiquadas e patriarcais de ensinar moralidade às crianças pode se surpreender em descobrir como essas narrativas sobrevivem entre roteiristas e criadores até hoje.
Um exemplo é a "jornada do herói", conceito de Joseph Campbell em "O Herói de Mil Faces" (1949), que continua um forte modelo na construção de histórias modernas.
A persistência dos contos de fadas, nas versões infantis e também adultas, tem mais justificativas do que apenas seus personagens ou enredos. É isso que nos faz redescobrir o recém-lançado livro "Contos de Fadas: modos de ser e de usar - educação, arte e psicanálise" (Panda), de Katia Canton*.
Muitos criticam essas histórias por supostamente ensinarem, especialmente às mulheres, um ideal de amor romântico e submisso. Mas, quem lê os contos só pelos personagens perde a chance de entender as teorias de transformação. E quem tenta eliminar bruxas ou lobos maus das histórias, por exemplo, ignora que as crianças também carregam a maldade e a agressividade dentro de si.
É justamente o reconhecimento da nossa complexidade e ambiguidade sobre temas morais —inclusive nos nossos filhos— que nos faz lidar melhor quando impulsos hostis e cruéis aparecem. Se somos absolutamente bons, nada nos impede de exercer nossa bondade "purificadora" e "justiceira" sobre os outros.
A importância dos contos de fadas não está tanto na introdução ao universo mágico ou na sua moral civilizatória e pedagógica, mas na ideia de que existem narrativas universais, compartilhadas entre gerações, que atravessam séculos para produzir uma unidade moral.
Há uma herança simbólica nas fábulas de Marie de France (século 12), nos contos barrocos de Perrault, nas reinterpretações românticas dos Irmãos Grimm, nas versões modernistas de Hans Christian Andersen e até nas adaptações edulcoradas da Disney.
Nos mitos dos povos originários, a oralidade traz uma renovação temporal, que ajusta a história aos problemas impostos pela transformação social —como o intercâmbio com outros povos, outas línguas e outros mitos.
Nos contos de fada, a escrita serve para que a burguesia ascendente e letrada expresse diferentes estratégias de individualização.
Isso ganhou respaldo surpreendente com pesquisas arqueológicas recentes que identificaram 349 contos de fadas entre quase 900 histórias analisadas, e chegaram a um conto falado originário, de cerca de 6.000 anos atrás: O Ferreiro e o Diabo.
A estrutura é a mesma: o herói ou a heroína, que sai de casa, enfrenta obstáculo grave, conquista aliados e enfrenta inimigos até conquistar algo ou alguém, que permite seu regresso e reestabelecimento.
É um mito crucial para entender quatro tipos de transformações:
Transformações naturais: a passagem da infância para a vida adulta, marcada por mudanças corporais, ritos de passagem e novas imagens. Servem para ensinar que passagens vitais não ocorrem sem angústia, incerteza e perdas.
Transformações sociais: a interiorização de noções de justiça e transição das regras do espaço familiar para o público. Servem para ensinar que não basta ser rei para ser justo, sábio ou virtuoso.
Transformações do desejo e dos afetos: o aprendizado sobre renúncia e esperança e reconhecimento da contradição entre ideais e estruturas sociais. Servem para entender processos de diferenciação.
Meta-transformações: as questões existenciais, como vida e morte, escolhas definitivas, pactos com outros mundos e realidades. Servem para entender que a vida é finita e que nem toda transformação pode ser revertida.
Essas quatro mudanças que aparecem nos contos de fada nos fazem pensar sobre: 1) o humano e o animal, 2) o privado e o público, 3) o íntimo e o mostrado, e 4) a vida e a morte.
Contos de fadas como antídoto para educação conformista
O ensino dessas narrativas poéticas talvez seja antídoto contra a crise provocada pela linguagem digital e a barbárie da educação hoje, muitas vezes apoiada pelo controle químico do comportamento e por técnicas adaptativas e conformista.
Existe uma nova camisa de força: a moralidade ascética e a proteção do "investimento" educativo eliminam o conflito, a agressividade e a sexualidade. Depois, isso retorna de forma mais violenta, em forma de tirania do consumidor e soberba ignorância.
Aqui, não há mais floresta de incertezas, nem bruxa ou madrasta.
Tudo é bom e controlado até que o grande mal emerja como monstro incontrolado. Diante dele, a palavra e a mediação de conflito cedem espaço à polícia e à judicialização do direito de oprimir o outro.
Na sociedade digital, não há tempo para transformações que envolvam longas jornadas, viagens entre mundos ou conflitos produtivamente sustentados.
Contra isso, ainda nos restam os contos de fada e suas ricas, complexas e concorrentes concepções sobre como nos transformamos.
* Katia Canton é artista, escritora e educadora. Estudou arquitetura, dança, jornalismo e frequentou cursos de arte com Nelson Leirner, Naum Alves de Souza, LC Baravelli, Carlos Fajardo e Feres Khouri. Viveu e se formou em Nova York, participando dos movimentos artísticos dos anos 1980.
É uma artista e pesquisadora que dedica a explorar os fundamentos estéticos da psicoterapia, e sua tese de mestrado e doutorado relaciona artes e contos de fadas. Ela explora também o uso simbólico de ervas, produtos químicos e receitas — como na sua exposição A Arte Cura? e no divertido livro 'A cozinha curiosa das fábulas: 14 histórias com receitas'.
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