Novo filme de Almodóvar revela a morte como vivência social e psicológica
Ao analisar a forma como morremos, podemos reconstituir, de forma integral e estrutural, os valores que comandam nossa forma de viver. Vamos pensar em morte, finitude e acabamento a partir do novo filme de Pedro Almodóvar, "O Quarto ao Lado"?
Normalmente, entendemos a morte como processo de término, finalização ou interrupção da vida, mas a morte não é apenas um acontecimento individual, é uma experiência social e psicológica total.
Morrer é perder uma batalha?
Hoje, morrer torna-se cada vez mais "perder uma batalha" —em geral, no silêncio do hospital e na vergonha da decrepitude do corpo.
O contraste é brutal com o filme 300 de Esparta (1983), que mostra como um guerreiro na antiguidade grega devia ser louvado justamente por morrer em combate. Sua valentia dependia da cadeia familiar e da linhagem moral a qual se pertencia, o que fazia da morte honrosa o paradigma de uma vida bem vivida.
Para certas comunidades orientais, morrer em paz, segundo uma decisão de afastamento, é sobretudo um ato de amor, que poupa os sobreviventes do encargo dos cuidados terminais —como vemos em Balada para Naraiama (1958).
A recente decisão do grande poeta Antonio Cicero de retirar-se para morrer, diante de uma doença debilitante, expressa em sua pungente carta de despedida faz parte desta discussão sobre a diferença entre eutanásia e suicídio.
Em vez de focar a despedida, a ressignificação e o sentido da vida que se encerra, a morte e morrer nos remetem à finitude de cada uma de nossas existências. Pensar a finitude de uma vida humana, para além das hipóteses religiosas ou metafísicas, coloca em questão que tipo de infinito é o seu correlato.
A morte e o infinito
De alguma forma, sobrevivemos à nossa própria morte. Trata-se do pacto entre vivos, mortos e os que ainda não nasceram.
Tal como nos filmes Ghost do outro lado da Vida (1990), A Partida (2008) e Amor Além da Vida, a ideia teológica de alma ou sobrevivência do espírito tem um equivalente laico na ideia de sobrevivência na cultura, na arte e nas instituições que ficam de legado.
A obra de cada um, composta por seus atos, palavras e desejos dissolve-se na sua comunidade, formando o que chamamos de cultura. A soma de conversas e projetos que colocamos de pé em vida se desliga de nossa autoria e pessoalidade na morte e forma uma massa comum —como a figura do infinito.
Morrer é transformar-se em outra coisa.
Freud postulava que a pulsão de morte nos envia, inexoravelmente, para a descontinuidade da vida. É o sentido de continuidade material, ressaltado pelas crenças ameríndias e hindus: retornar a um estado anterior, ou seja, ao das moléculas de carbono, da qual somos feitos, que se dissolverão na natureza para compor e recompor outras substâncias vivas.
Como morrer, afinal?
Freud ressaltava também que isso implica que cada um morrerá à sua própria maneira e ao seu próprio tempo.
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Quero receberTemos escolhas dentro deste processo. Muitas são indiretas, ligadas aos riscos e cuidados que decidimos tomar ao longo da vida. Mas nenhuma suficiente para comandar ou deter nosso processo de acabamento.
De qualquer maneira, o processo de morrer, aceitar ou lutar com a finitude e acabar depende da incidência da tecnologia sobre a ética. Discutimos sobre cuidados paliativos e declaramos como e quando queremos ser tratados medicamente.
Como a tecnologia não é distribuída igualmente entre as pessoas e como a ética presume diferentes atitudes diante de nossos consensos morais e jurídicos, sempre teremos aqueles que estão na "vanguarda" dos novos modos de viver e morrer, aqueles que estão na retaguarda, esperando um pouco mais para assimilar as novas técnicas, e aqueles que estão divididos entre o novo e o antigo.
Vários filmes já retrataram esse processo de despedida e luto: desde Viver (1953), até Coração Normal (1985) e o Ano do Pensamento Mágico (2007). Agora, o filme de Almodóvar discute as promessas e a decepção no tratamento médico, ressaltando o problema da integridade de uma vida, completa em si mesma, ainda que finita.
Uma vida, mesmo tendo sido bem vivida, vê-se diante da indignidade representada pelo degradante processo de acabamento e diante e vê-se diante de desejos pendentes, insatisfações residuais e amores inconcluídos.
Martha, a protagonista, está com câncer e decide "não se tratar" quando recebe a noticia. Ela parece, inicialmente, pronta para morrer, já que a vida lhe deu o suficiente, e a festa um dia tem que acabar. Como ela diz, teve uma vida cheia de emoções e intensa adrenalina, graças à profissão de correspondente de guerra.
Mas, a vida bem vivida, veio acompanhada de muitas viagens que a distanciaram da filha. Quando ela comunica a decisão à filha, com quem mantém dificuldades históricas de relacionamento. recebe uma resposta seca: "a decisão é sua".
Aparentemente, isso faz Martha perceber que sua vida depende também da apreciação dos outros. E é essa contabilidade trágica de perdas e ganhos que sempre decide sobre o valor desta finitude.
O sarcasmo da filha enfatiza a repetição de um padrão do relacionamento: você não me deixa participar das decisões e também vai embora sem me consultar. Como se entre elas vigorasse um pacto do tipo: se você não precisa de mim, então eu não preciso de você... passar bem (desta para melhor).
Ou seja, tudo bem quanto a morrer, mas o acabamento se tornou complicado.
Nesta hora, Martha pede ajuda a uma antiga amiga, que a vida separou sem diminuir os laços de intimidade e confiança. Com auxílio de uma tecnologia "ilegal", ela adquire uma pílula da morte e desenha seu próprio fim.
O que vemos então são diálogos memoráveis sobre a finitude. Diálogos de fazer inveja aos maiores filósofos estoicos como Sêneca e Marco Aurélio.
Mas o ponto de máxima originalidade do filme diz respeito ao processo simbólico pelo qual morrer afeta os outros e por isso o luto é sempre um processo coletivo.
A beleza do filme de Almodóvar está em como as palavras por dizer —sobre a história dos outros, no caso, da filha — encontram uma testemunha e portadora, que é a amiga.
A porta de uma vida pode se fechar abruptamente, ficar entreaberta por longos períodos ou ser fechada com toda delicadeza de quem se despede agradecido.
Mas ela sempre deixará para os que ficam e para os que se vão palavras por dizer.
Afinal, é desta conversa inconcluída e desta história da qual somos os continuadores que nós somos feitos, no melhor e no pior da matéria que nos constitui.
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