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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como promover a desbolsonarização da classe médica? Aqui vai uma proposta

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Imagem: Getty Images

04/02/2023 04h00

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Muitos se perguntam quando o papel desempenhado por uma parte significativa da classe médica, inclusive de alguns de seus órgãos representativos, passará por um processo de esclarecimento e desbolsonarização.

Três tópicos são essenciais neste processo:

  1. Qual o papel exercido por médicos e suas associações de classe, durante a pandemia de covid-19, especialmente nas decisões concernentes a formação e condução de políticas públicas, capaz de justificar que o Brasil tendo 3% da população mundial chegou a uma taxa de mortalidade de 10% dos casos globais?
    Se há uma explicação epidemiológica, que ela seja dada.
    Se existe um conjunto de medidas orgânicas e institucionais tomadas de modo contraproducente, como mostrou Deisy Ventura, é preciso delimitar a participação dos responsáveis.
    Não me refiro às declarações genéricas, como a da presidente do Conselho Federal de Medicina celebrando atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, mas ao fato de que quando se trata da proteção da saúde pública, de danos nefastos e irreparáveis a vidas humanas, não cabe anistia.
  2. Qual o impacto real na saúde dos brasileiros, produzido pela evasão de 4.000 médicos estrangeiros, que trabalhavam no programa Mais Médicos?
    Qual o prejuízo para as condições sanitárias e sobre o acesso geral da população a serviços de saúde, legados pelo governo Bolsonaro?
    Como foi possível que órgãos reguladores e de fiscalização do Estado desrespeitassem o dever de salvaguarda da saúde da população, colaborando de forma tão leniente para o desastre?
  3. Quais evidências científicas justificam a restrição de práticas de atenção e promoção de saúde, como prerrogativa da medicina?
    Ou seja, contrariando achados científicos bem documentados, desconhecendo políticas públicas consagradas em vários países, desviando-se da própria história do sanitarismo brasileiro, que redundou no conceito de Sistema Único de Saúde, o Conselho Federal de Medicina fez aprovar a chamada Lei do Ato Médico, que restringe injustificadamente procedimentos clínicos, multiplicando o escopo da responsabilidade exclusiva do médico, concorrendo para subalternizar, inclusive em nível econômico, categorias como enfermagem, terapia ocupacional, fisioterapia, nutrição e fonoaudiologia.
    Resultado: saúde mais cara, menos eficiente, com maior concentração de recursos, sem integração público-privado e menos acessível à população em geral. Saúde, vendida como mais segura, para quem?

Os dois últimos tópicos foram apresentados e discutidos, com repercussão nacional, por Gonçalo Vecina Neto e Walter Cintra Ferreira Jr., e repudiados por órgãos representativos como o Conselho Regional de Medicina de São Paulo:

Ao lutar para impedir que profissionais sem a devida habilitação possam realizar procedimentos restritos da medicina, o Cremesp está na verdade salvaguardando a saúde da população e, portanto, cumprindo com seu dever perante a sociedade. Poupando os pacientes dos danos nefastos —muitas vezes irreparáveis— causados pela imperícia de profissionais não habilitados, que exercem ilegalmente a medicina."

Irene Abramovich, médica e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, e Angelo Vattimo, diretor 1° secretário do Cremesp, em texto na Folha de S.Paulo

Ora, se o que está em discussão é exatamente quais são os "procedimentos restritos da medicina" é um sofisma dizer que "em nome dos procedimentos restritos defendemos os procedimentos restritos".

A falácia piora quando fica posto que "nós mesmos" definimos e reafirmamos o caráter restrito dos nossos procedimentos restritos.

Qualquer profissão deve justificar suas prerrogativas em termos públicos, segundo regras gerais da razão e as circunstâncias culturas ou técnicas disponíveis.

No site do Conselho Federal de Medicina não há vergonha alguma em defender o Ato Médico como parte do interesse da profissão, não do interesse da saúde.

Francamente, aqueles que agora criticam gente como Gonçalo Vecina, onde estavam quando o governo quis empurrar cloroquina para o povo?

Quando Lister praticou a assepsia cirúrgica, em 1857, o procedimento era de uso médico exclusivo, mas com o passar do tempo outros profissionais, como dentistas, bem como enfermeiros e técnicos especializados são plenamente capazes de dominar a técnica.

Aliás, foi um dentista chamado Morton que fez a primeira cirurgia com anestesia, em 1846, o que mostra que as técnicas não são prerrogativas de uma profissão, mas sim o controle de seu uso.

Em 1885, Pasteur, que não era médico, mas químico, aplicou a primeira vacina antirrábica.

Se valessem as regras de "proteção da população", como quer o Conselho de Medicina, isso não teria sido possível.

A raiva é uma doença mortal, transmitida pela saliva de um animal contaminado. Mas a raiva pode ser causada também por elites irresponsáveis, que em situação de crise, se preocupam apenas com suas prerrogativas.

Sejamos honestos, hoje a maior parte dos procedimentos, em clínicas particulares e públicas, inclusive laudos primários de exames, são realizados por técnicos, enfermeiros e pessoal não médico.

Mas o caso que quero discutir em maior profundidade diz respeito à saúde mental. Especificamente a disponibilidade real de psiquiatras em um país de extensão continental, quase tão grande quanto a desigualdade na distribuição de recursos humanos especializados.

Neste caso há uma prática terapêutica, de natureza clínica, chamada psicoterapia que é prerrogativa tanto de médicos, quanto de psicólogos.

Por outro, lado existe um conjunto de procedimentos diagnósticos, baseados em testes projetivos, gráficos-expressivos, neuromotores, de personalidade, inteligência etc. que são prerrogativa de psicólogos.

É bastante provável que, nos dias de hoje, a formação médica básica seja muito, mas muito menos habilitante para a prática da psicoterapia do que era na década de 1960, quando a psiquiatria não era primordialmente farmacológica.

Ora, um psicólogo que estuda e pratica o tratamento pela palavra, por cinco anos, ao longo de seu curso de graduação é francamente mais habilitante e "seguro para a população" do que o que um médico adquire em seu curso.

Neste sentido, poderíamos dizer que a prática da psicoterapia por médicos é um risco à população, traz danos nefastos potenciais às pessoas, cuja perícia é legalmente garantida, mas praticamente arriscada e um desserviço à população.

Até que se invente algum teste capaz de medir biomarcadores para os transtornos mentais o que melhor se pode fazer é o exame clínico e as provas psicodiagnósticas.

Por este raciocínio, que no fundo apenas exagera a lógica da "prerrogativa" e sua usual generalização no transporte de premissas da ciência para as práticas em saúde, chega-se nesta constatação absurda.

Terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos podem se tornar excelentes psicoterapeutas, desde que possuam formação complementar específica.

Psicanalistas não precisam ser psicólogos para serem bons psicoterapeutas, desde que passem por instituições capazes de controlar a qualidade da formação.

No mundo é cada vez menos a formação universitária básica e cada vez mais a especialização, as certificações e as provas de controle continuado que definem a habilitação para a prática (ainda que eu mesmo não concorde com esta política).

Se queremos mudar a situação desastrosa da saúde mental no país precisamos suspender a ridícula pretensão de "prerrogativas protetivas de mercado" e convergir os recursos do SUS com o retorno de políticas como Saúde da Família, Mais Médicos e —por que não— Mais Psicoterapeutas.

A proposta do governo atual de um Departamento de Comunidades Terapêuticas é potencialmente desastrosa, mas fruto da posição de extorsão em que o Estado se encontra.

Incapaz de mobilizar investimentos necessários na área, tendo à mão a "terapêutica religiosa" como opção barata, especialmente no contexto de álcool e drogas, se vê obrigada a negociar de um lado com os "salvadores de almas".

Mais simples seria capilarizar a saúde mental, usando as cozinhas coletivas como base, expandindo-as como ponto de saúde mental, recrutando alunos de quarto e quinto anos dos cursos de medicina, psicologia, ciências sociais, terapia ocupacional e assim por diante, inscritos no FIES e Prouni, abatendo a dívida por meio de trabalho.

Precisamos colocar nossos alunos de "elite" (que no Brasil significa qualquer um que tenha acesso a universidade), em contato com a verdadeira realidade do país.

Enquanto as entidades que deviam se preocupar com a solução do problema continuem a chamar de "comunistas de esquerda" quem se importa com os problemas reais, ficaremos discutindo prerrogativas enquanto a população real passa fome, sofre sem escuta e fenece como um Yanomami.

De fato, os Conselhos de Medicina precisam, urgentemente, de uma vacina antirrábica, ao custo de um aumento de seu descrédito social.

Mas quem vai levar a sério uma proposta como essa?