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Blog do Dunker

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como tecnologia e redes sociais destroem nossa noção individual de tempo

Relógio despertador se dissolvendo na mão de uma pessoa; pressa; falta de tempo; ansiedade - Indu Bachkheti/iStock
Relógio despertador se dissolvendo na mão de uma pessoa; pressa; falta de tempo; ansiedade Imagem: Indu Bachkheti/iStock

05/09/2022 04h00

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Uma das inovações mais conhecidas introduzidas por Jacques Lacan na prática psicanalítica é o chamado tempo lógico, ou seja, as sessões não têm um tempo fixo, mas dependem, na sua extensão, do que está sendo efetivamente dito no interior daquela relação.

Desta maneira, tenta-se reintroduzir uma experiência lógica do tempo, subvertendo a cronologia objetiva unilinear e sucessiva, no interior da qual tempo é convertido em dinheiro.

Se a fórmula dá certo, e nem sempre isso acontece, reinterpretamos o tempo das coisas, do cotidiano, da natureza do mundo, convidando o sujeito a transformar-se no tempo, a reposicionar-se a partir da sua passagem.

No limite, isso nos levará à percepção de nossa própria finitude, de nossa historicidade e de como podemos fazer "acontecer nosso próprio tempo".

Para Lacan há três maneiras básicas de subjetivar o tempo:

  • O instante de ver, no qual realizamos uma situação imediatamente;
  • O tempo para compreender, no qual invertemos e incluímos o Outro em nossa interpretação do tempo e;
  • O momento de concluir, no qual percebemo-nos em atraso, nos angustiamos e nos precipitamos em um ato que é capaz de ultrapassar nossos juízos e motivos.

Uma sessão deve durar aquilo que seu tempo lógico exige, por isso usamos extensões variáveis de sessão. Sessões que duram o que tem que durar em função do que o paciente diz e na temporalidade na qual ele se envolve enquanto diz.

O corte, ou interrupção da sessão, às vezes no meio de uma fala ou muito antes que o paciente nos conte tudo o que tem para dizer, ou que ele "queria dizer" é uma estratégia para mudar a estratégia temporal de alguém em relação ao seu desejo, ao Outro e a sua economia libidinal.

De certa forma nós já aplicamos intuitivamente o tempo lógico, em nossas relações cotidianas, mas sem conceituá-lo. Quando saber qual é a hora certa para se declarar a de quem se ama? O momento certo de ter filhos ou se separar? Quando é a hora de mudar de vida e começar de novo?

Todos nós reconhecemos a estranha coerência ou incongruência temporal de certos movimentos. Nas relações humanas não conseguimos antecipar, prever e coordenar, mas sabemos perfeitamente quando estamos prontos para algo. Assim também sabemos quando algo aconteceu antes do que devia, ou quando o tempo certo se perdeu.

Também na elaboração de nossas vidas há "fichas" que caem às vezes anos depois de que alguém nos disse ou fez algo. Mas é só depois de muitas outras compreensões e instantes que podemos voltar a perceber como "tudo já estava lá", nós é que não percebemos.

Este saber sobre o nosso tempo próprio é essencial em processo como educação e criação de filhos: como saber quando é a hora de desmamar, de tirar as fraldas ou de colocar na escola? Como saber que é hora de se aposentar?

Em todos estes processos estão implicadas lógicas de decisão, que são singulares, mas também coletivas. Ou seja, o "seu" tempo não existe sem o tempo do outro, mas ele não é propriedade definida nem de um, nem do outro.

Nossa economia de prazer está integralmente regulada e dependente dessa lógica temporal. A começar pela pergunta que pode parecer vaga e sem resposta quando se fala genericamente, mas que é pura e cristalina quando se toma um a um: quanto vale o amanhã?

Há pessoas que vivem como se nunca existisse amanhã, outras que só vivem no amanhã, há alguns que não conseguem concluir nunca, outros que estão sempre concluindo. São políticas distintas do prazer no tempo e que se alteram conforme a relação que temos com o nosso desejo e com o nosso gozo.

O tempo não é o mesmo para todos e porque o tempo varia conforme a posição do eu com o Outro.

Imagine a vida como uma viagem. Às vezes nos sentimos parados e achamos que é o cenário que muda. Isso acontece quando estamos realmente parados, do ponto de vista de nossos desejos.

Em outros momentos sentimos que a vida é um aluvião que nos leva de lá para cá. Tudo passa depressa, mas é porque você sente que não consegue encontrar sua própria posição.

Outras vezes é o carro que anda e a paisagem que se fixa, monotonamente. Por vezes a estrada fica sem sinalização, nada que indique ou represente o desejo do Outro, o que nos deixa sozinhos na viagem.

Nas relações amorosas isso é crítico. Uma vai mais rápido, o outro mais devagar, mas de quando em quando isso se inverte. Outras vezes só acordamos quando é "tarde demais". Na maior parte das vezes estamos desencontrados no tempo.

Por isso a felicidade se diz em muitas línguas como uma questão de encontro —"Happy" (de "happened", o que acontece), "Glücklich" (boa sorte), "Bonheur" (boa hora)—, pois a felicidade é quando estamos num cruzamento de tempos. Em geral passa rápido porque é um tempo de felicidade, não uma condição permanente.

O aumento de informações —ou de estímulos— reduz nossa percepção da diferença entre eles, logo nossa capacidade de afetar-se com suas irregularidades, exigindo patamares cada vez maiores de oscilação para registrar algo como novidade ou "interessância".

Isso altera profundamente a percepção do tempo na medida em que ela é dependente da percepção da diferença, do intervalo e da intensidade da diferença entre termos.

Uma vida cheia de crises gravíssimas pode redundar em acomodação e insensibilidade, em meio à tempestade. Uma série de eventos espetaculares torna cada evento menos espetacular. Isso exige cada vez mais de nossa capacidade de implicação e de nosso trabalho decisional.

É possível que algo agradável e benfazejo como escolher o restaurante onde se vai ou onde se vai passar as férias, torne-se um tormento para alguém saturado de seleções, escolhas e tomadas de posição. O truque aqui é que a demissão desta inscrição na própria lógica temporal acaba por diminuir ainda mais o gradiente da diferença exaurindo o sujeito ali mesmo onde ele deveria recompor sua relação com o tempo.

Há pessoas que terminam o domingo extremamente deprimidas, porque depois de ocupar impiedosamente o fim de semana sentem-se vazias ao seu final. No fim, aliás, é por isso que se chama fim de semana, sentimos que estamos "obrigados" a um novo início, mais pesado, porque o tempo passou tão rápido.

Há situações de vida, por exemplo, a tenra maternidade, em que sentimos que nosso tempo foi roubado pelo pequeno bebê, simplesmente porque é ele quem diz quando dormimos, quando acordamos, quando comemos ou quando podemos tomar banho. Por isso muitas destas jovens mães sonham com cinco minutos "só para si".

Desconfio que muito do apelo de cabeleireiros e manicures, além de cuidados com o corpo, advém de uma justificativa secundária para produzir esta qualidade tão especial e tão importante de tempo.

A leitura é outro destes artifícios para criar um novo tipo de temporalidade, dada pelo mover das páginas, pela ação da trama ou pelo devaneio da entrega que nos tira deste tempo no qual estamos.

As novas tecnologias, especialmente as redes sociais e certos modos de relação com a imagem, alteram violentamente nossa relação com o tempo. Elas criam várias figuras de "tempo morto", que já existia antes, como os jogos de paciência e a conversa fiada. Mas agora isso pode ser feito praticamente a qualquer hora.

Geralmente precisamos disso quando isso é mais terrivelmente improducente, quando estamos pressionados e queremos de toda forma "respirar".

A disponibilidade produz um efeito metonímico, ou seja, um deslizamento de "opções" sem que tenhamos que pensar muito, o que convém ao cansaço decisional.

Por isso o consumo de séries faz tanto sucesso. Ao repetir uma fórmula, mais ou menos previsível, com pequenos detalhes mutantes, aos quais nos podemos fiar, elas suspendem nosso cansaço decisional.

Séries, assim como redes sociais, oferecem uma paisagem monótona com vibrantes irrupções de diferenças.

Mas aqui começa o problema, porque há certos truques que nos levam a "acelerar" a relação com este tipo de tempo. Esta aceleração é consentida e acaba virando uma espécie de "vício" porque independente do que nós estejamos fazendo, há um prazer que advém da percepção de que o estamos fazendo mais depressa.

As principais modalidades de sofrimento são expressões diretas de modos de relação com o tempo: o tempo que não passa do depressivo, o tempo que passa rápido demais do ansioso, o tempo infinito da angústia do pânico, o tempo uniforme do paranoico.

Poderíamos reescrever toda a psicopatologia a partir das relações com o tempo. E obviamente sabemos que a qualidade de vida não está na posse de bens ou pessoas, mas na experiência do tempo com eles.

Reeencontrar o tempo lógico é uma forma de tratar o sofrimento no trabalho, em tempos de neoliberalismo, deter a máxima de que o tempo útil é o tempo produtivo, suspender o mito do tempo contado por obras, notas ou feitos.

O tempo próprio de cada um e de cada experiência são a condição e o limite de uma vida que vale a pena ser contada.