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Blog do Dunker

OPINIÃO

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Miniadega e mestrado: colunista da Folha tem vez num papo entre cientistas?

Gerd Altmann/ Pixabay
Imagem: Gerd Altmann/ Pixabay

29/10/2021 04h00

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Lendo a coluna de Tati Bernardi , na Folha de S.Paulo da semana passada, fiquei profundamente decepcionado. Ela compara a aquisição de uma miniadega de vinhos com a entrada no mestrado, passando pelo investimento pesado em material para artes plásticas. Coisas peludas que habitam o imaginário dos incautos e que afloram ganhando vida própria sob condições de clausura, abstinência e dieta egoica, imposta pela quarentena.

Como psicanalistas nos interessamos exatamente por este tipo de sonho, devaneio ou fantasia. Como professor de mestrado não vejo nenhuma indignidade em ser comparado com um minibar frívolo e fútil. Minha decepção é com o fato de que se não conseguimos acolher uma escritora e colunista, investida da mais benévola boa vontade, em nossas conversas acadêmicas é porque o fracasso se aproxima a galope. Afinal, o que faremos com o resto do Brasil?

De fato, a inclusão não é apenas uma questão de abrir porteiras e baixar muros, nem assunto que se resolva inteiramente com boa vontade e acolhimento. Soberano e acima de nós resta a "resistência dos materiais".

O texto ridiculamente complexo de Lacan, as suposições sobre história da arte, as alegorias insuspeitas de palavras indiscerníveis, em seus novos sentidos, exatamente como Tati descreve em sua coluna (sem falar nos parágrafos desnecessariamente longos, como este que acabo de escrever).

Acolher estrangeiros testa limites e decepções com a própria cultura. Se a cultura universitária a qual pertenço não consegue acolher intelectuais com trajetórias diversas, seja por motivos disciplinares, etários ou de estilística cognitiva, temos um problema de redefinição do lugar social da universidade.

Toda a questão é saber se o diagnóstico proposto por Clemens Greenberg, sobre a aurora do modernismo, em 1939, continua valendo ou não, em escala macroscópica e digital, hoje:

O desastre vem para a arte quando filhas e filhos de camponeses e artesãos se encontram em posse de um tempo de lazer sem ter os meios de apreciar os 'valores da cultura genuína'."

Greenberg, C. (1939) Vanguarda e Kitsch. In Clement Greenberg e o debate crítico. Org. Gloria Ferreira e Cecília Cotrim de Mello. Trad. Luiza de A. Borges: Rio de Janeiro: Funarte; Jorge Zahar, 1997

Neste sentido estaríamos divididos entre uma elite sem aspas que está buscando excelência e sobrevivência no circuito mundial da pesquisa científica e uma "elite" com aspas que está em posição de privilégio simplesmente por estar em uma universidade pública.

A elite sem aspas luta diariamente contra a barbárie bolsonarista para sustentar pesquisas com orçamentos irrisórios, manter bolsas de estudo em meio a falta de reposição de professores.

A elite sem aspas ressente-se que as cotas coloriram demais o ambiente, quer manter privilégios e preservar muros. Ou seja, intelectual não se define por oposição a manual, mas pela forma como respondemos de nosso lugar na elite, seja ela econômica, universitária, musical, literária ou jornalística.

Com a ampliação do espaço público e com a metamorfose do espaço político passou a ser lugar-comum atacar a elite sem reconhecer que ela é também antagonismo cultural.

Como se elite fosse sempre o outro, o que reproduz o pior sintoma de nossas elites (agora no plural), ou seja, a falta de consequência e desimplicação da "elite" com relação a sua própria condição de elite. Se a "elite" é sempre a do outro, eu mesmo não tenho nada a fazer.

Falar de vinhos com propriedade, acompanhar o discurso culinário ou frequentar cursos de pós-graduação, assim como viajar para aumentar o vocabulário e a experiência cultural, podem ser vistos como impostura, moda ou inautenticidade. Inversamente, afirmações de autoridade, ainda que baseadas em saberes complexos e não autoevidentes, são recebidas como "carteiradas" destes que acumulam títulos apenas para humilhar os outros.

Mas o avesso do avesso dirá que a mediocridade invadiu o país por todos os poros, a covid-19 aprofundou ainda mais a desigualdade educacional e os tempos são tão sombrios que deveríamos nos agrupar, qual monges copistas medievais, a elite da elite, esperando o Inverno passar.

Não sei bem o que pensar desta espiral crítica. Primeiro, porque rigorosamente falando foi sempre assim, pelo menos na modernidade.

Adquirir experiências culturais é um passo importante para estabilizar nossos processos de reconhecimento.

Se queremos uma sociedade com alta mobilidade social devemos estar dispostos a entender que a entrada em universos simbólicos, para os quais não fomos formados ou dos quais temos notícias distantes é um passo importante para justificar nossa própria ascensão ou descensão social.

Opor aqueles que estão atrás de cultura como "signo de status" e os que estão em uma "aventura espiritual com o saber" é um erro primário de quem não entende que cultura é justamente formada por este tipo de contradição.

Isso só se torna um verdadeiro problema quando implica, por exemplo, negar, esconder ou se deixar intimidar pela cultura de origem ou reciprocamente a cultura de chegada.

Ou seja, o que faz de alguém um provinciano não é que a pessoa nasceu na Vila Maria ou em Santa Bárbara d'Oeste, mas que ela não consiga interpretar-se como estrangeiro movente e marginal entre culturas, como afinal somos todos nós.

Assim como acredito que a luta contra o racismo passa pelo letramento racial, acredito que a luta contra a desigualdade educacional passa pelo bilinguismo cultural. Mas ao contrário da democracia racial que nunca virá da simples mistura étnica acredito na hibridização de discursos, narrativas e linguagens.

Neste trajeto nem tudo é questão de harmonização entre Bonarda e Tempranilo, bom gosto frutado ou lapidação vintage de sua carteirinha de sócio torcedor roots do União Agrícola Barbarense.

Muitos momentos serão vividos exatamente como quando pisei pela primeira vez na universidade de Manchester ou na Sorbonne, precisamente como descrito por Madame Bernardi: não entendi nada, ou também em latim: porris nenhumis.

Quando encontramos abismos simbólicos como este, surgem duas reações típicas: negar o desejo de saber e reafirmar nossa identidade de origem. Isso pode reforçar experiências anteriores de exclusão, como se fossemos punidos por trair o lugar e a pessoa de onde viemos.

É assim que se constroem condomínios imaginários, lugares "que não são para mim", complementar ao lugar de "gente como a gente".

O casamento mórbido entre heterossegregação e autossegregação enfrenta no Brasil um estado de "Game of Thrones" se pudermos suportar um pouco mais de ignorância e um pouco menos de arrogância.

Portanto e afinal ....volta aqui, Tati.