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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Teme que tecnologia roube emprego? Motivo do seu sofrimento é mais profundo

Luis Villasmil/ Unsplash
Imagem: Luis Villasmil/ Unsplash

03/09/2021 04h00

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Desde um certo tempo aprendemos que ter um trabalho tornou-se uma espécie de benefício. Uma concessão benemérita, quase uma "prenda", de quem escolhe montar um negócio e "gerar empregos".

No fundo, cada um deveria entender que mesmo os que estão empregados devem pensar a si mesmos como dirigentes e gestores do próprio negócio. Depois da democracia racial chegamos à democracia empresarial.

Ainda na faculdade, aprendi com o grande Sigmar Malvezzi que deveríamos nos acostumar com a ideia de um mundo dominado por formas de vida que não trabalham, ou pelo menos não no sentido de um contrato formal para quem vende livremente sua força de trabalho no mercado livremente organizado por um contexto de livre mediação jurídica e institucional.

Não é que o trabalho iria acabar, mas ele mudaria de forma, com novos empregos gerados pelas novas tecnologias.

Aplicava-se assim a máxima freudiana de que como nunca sabemos exatamente o que perdemos não estamos em condições para avaliar com justeza o que ganhamos.

Mas isso não significa que o progresso, como ilusão perspectiva ou indeterminação controlada, deva ser revertido em pessimismo e niilismo, pois afinal não saber não é o mesmo que saber que não.

Autores como Steven Pinker e Yuval Harari têm se notabilizado por popularizar dados impressionantes sobre a melhoria da qualidade de vida, notadamente no último século.

Em debate recente com o primeiro, este questionou o crescimento da desigualdade e da iniquidade de distribuição de recursos, econômicos e simbólicos, como direitos humanos, quando olhamos para a redução brutal da pobreza global, particularmente com o peso proporcional dos avanços na China e na África.

Mas a equação geral dos últimos 100 anos, quando se trata de progresso ou regressão, fica comprometida pelo fato de que metade deste tempo vivemos sob o pacto laboral liberal, com proteção de emprego e a promessa de bem-estar social e a outra metade sob a crescente desproteção do trabalhador e a perspectiva do bem-estar tecnológico.

Portanto, não sabemos ao certo se ainda estamos vivendo o resto dos "benefícios do atraso" liberal, ou o prenúncio de que chegamos na fronteira final e no limite de expansão do modelo neoliberal.

A única objeção à teoria do ritmo expansionista, da redução de recursos e empregos, remanesceria na devastação ambiental.

Antes disso devemos nos conformar com o argumento "socialista" de que estamos todos melhorando, e se você não sente isso é porque está em uma posição privilegiada e não daqueles que estão pela primeira vez tendo acesso a água encanada, perdendo menos filhos para a mortalidade infantil ou morrendo em função de doenças facilmente tratáveis.

Antes disso devemos confiar nos efeitos sistêmicos do trabalho desregulamentado, precarizado, intermitente, pejotizado, empreitado ou subempreitado, ademais home office.

Neste sentido, parece cada vez mais paradigmático o caso de um jovem recém-contratado por uma empresa de tecnologia que desenvolveu um programa capaz de fazer suas funções laborais, portanto de substituí-lo integralmente.

Ele se deixava "trabalhar" em alta performance, entregando os resultados esperados, tão somente ao deixar rodar o seu programa, sem informar obviamente que ele tinha desenvolvido tal tecnologia.

Caso análogo ao narrado por uma mineradora italiana que operava no norte de Moçambique contratando massivamente trabalhadores locais não especializados. Depois de algum tempo a companhia começa a enfrentar um grande absenteísmo, prejudicando a regularidade da produção.

Questionando-se os contratados, obteve-se uma resposta surpreendentemente pré e pós-moderna: "eu não vim trabalhar, mas isso não é motivo para me despedir, afinal mandei meu primo no meu lugar e ele é tão capaz quanto eu de fazer o serviço."

Podemos volta agora ao equívoco dos anos 1930.

A crítica dos neoliberais ao Estado serviria melhor como crítica a burocracia de Estado, ou seja, o poder paralelo à lei paralela ou informal que no Brasil adquiriu a textura do condomínio a partir de 1973, mesmo ano da implantação prática do neoliberalismo.

Mas dito desta forma o melhor do neoliberalismo confunde-se com o que já dizia Trótski e o que voltarão a dizer Zizek, Graeber e Mark Fischer, nos anos 2000. A crítica neoliberal ao liberalismo serviria melhor se ela mostrasse como o Estado, longe de ser um mau capitalista, está realmente ocupado por interesses que não são de todos, mas de alguns que conseguem se organizar rumo ao monopolismo.

O monopolismo de um lado e a hipertrofia do poder dos síndicos por outro eram críticas independentes, mais bem articuladas por liberais e comunistas, mas que para os neoliberais se reuniam na mesma coisa equívoca.

No fundo, os mediadores de regulamentos, os gestores de leis e aplicadores da lei, com suas exceções e com sua regulação da temporalidade dos processos, foram facilmente cooptados por quem podia pagar mais.

Dos melhores centros de pesquisa universitários às agências reguladoras e os tribunais, supremos ou terrenos, nada poderia resistir à força coercitiva da produção de fatos, quando se neutraliza a crítica como comunismo e pessimismo mal-intencionado.

No Brasil isso representou a indústria do sindicalismo pelego, o negócio da extorsão trabalhista e, em síntese, um sistema tributário que acasala monopólios com gestores da lei. De tal maneira que tanto a renovação do pacto pelo progresso dos empregos, baseado no desenvolvimento do país, quanto a luta contra a corrupção, baseado na extinção do poder paralelo não-republicano, pareciam ter fracassado.

Mas a eleição de um falso neoliberalismo só foi possível por meio da retenção do que o neoliberalismo tinha de essencialmente eficaz, ou seja, uma política de administração, no duplo sentido do termo, do sofrimento.

Enquanto liberais e comunistas entendiam que era preciso reduzir o sofrimento das pessoas, seja porque isso facilita os negócios, seja porque isso une as pessoas em ideais coletivos, o neoliberalismo afirma pragmaticamente, ou melhor, praxeologicamente, que aumentar o nível de sofrimento das pessoas aumenta o seu nível de produtividade.

Nada de zona de conforto, nada de segurança ou garantia, pois isso amolece o espírito de busca de excelência, renovação e super-engajamento no trabalho.

A tolerância com a predação no trabalho se desdobra para o meio ambiente. O incentivo para a competição, para autoavaliação e para a autosseleção consegue interiorizar tarefas da empresa para a interioridade do trabalhador, assim como a praticidade e o "barateamento" faz o consumidor assumir alegremente tarefas que caberiam originalmente à empresa.

Ele pode agora assumir o negócio jurídico transposto em uma cultura de denúncia, culpa e instrumentalização das próprias limitações e vulnerabilidades. Assim também o ambiente de trabalho, quanto mais institucionalizado, se torna também mais depressivo, traumático, ansioso e regado a medicalização e doping, formal ou informal.

Bônus erráticos, big brotherização, microgestão, avaliacionismo, métricas inconstantes de eficácia e efetividade, certificações e compliances formaram a cultura do coaching e da operacionalidade de processos.

Neurociências, freakonomics, genética comportamental, behaviorismo negocial, protocolos, consensos confirmavam, lentamente, a psicologia por trás do neoliberalismo.

Isso implicava a gradual substituição de tendências clássicas da psicologia, como o behaviorismo skinneriano, fenomenologia e a psicanálise, por práticas como psicologia positiva, constelação familiar e as palestras de motivação.

Este monismo da ciência e do saber levará alguns a afirmar que não há nenhuma outra teoria econômica. O fim da história era também o fim da filosofia e da controvérsia sobre a história, assim como o fim das disputas cognitivas. Elas deveriam se curvar ao metaprincípio da operacionalização e da efetividade, bem como o da identificação da institucionalidade científica com o poder de coerção cognitivo e de exclusão de alternativas.

Assim como o liberalismo clássico e o comunismo, a ideia de refletir a partir do princípio de que as prerrogativas cognitivas estabelecidas não devem conviver com diversidade e conflito, mas substituída por concepções, inerentemente superiores, nas quais o investimento seria mais seguro.

Isso nos ajuda a entender e confirmar a afinidade discursiva e histórica entre neoliberalismo e tolerância com a violência. Afinal, esta é a única face da lei, antes função exclusiva do Estado, que não pode ser inteiramente empresariada.

Seja como biopolítica, seja como necropolítica, o uso da violência não passa de mais um caso da relação entre meios e fins. Não há nada de sagrado nem de inusitado em nenhum comportamento, particularmente no comportamento verbal.

Isso começa pela interpretação de que se alguém está desempregado, segundo o liberalismo ou o socialismo, isso representa um problema para todos, ao passo que para o neoliberalismo isso é um problema do indivíduo que não soube produzir sua própria empregabilidade.

Por isso, precisamos suspender um pouco a reatualização constante de pactos liberais e tentar estabelecer um novo pacto laboral, ou seja, um retorno ao trabalho como função simbólica na vida das pessoas e não apenas como meio de produção ou acumulação de riquezas.

Precisamos entender que o negócio da produção nos foi apresentado, nos últimos 40 anos, como secundário diante do negócio da financeirização.

Mas a ideia generalizada de que o dinheiro trabalhará para você depois que você trabalhar para ele com afinco e sagacidade simplesmente não provê nenhum lugar nem nenhuma ocupação para milhões de pessoas.

Cedo ou tarde elas manifestarão sua insatisfação.

Precisamos de uma teoria econômica que dê conta disso e de um pacto laboral que lhe esteja a altura.