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Blog do Dunker

OPINIÃO

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Simone Biles dá lição para nossa sociedade de heróis que sofrem em silêncio

Simone Biles durante os Jogos Olímpicos de Tóquio - Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images
Simone Biles durante os Jogos Olímpicos de Tóquio Imagem: Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images

30/07/2021 04h00

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Depois de 25 medalhas olímpicas, cinco títulos mundiais em ginástica e depois de se tornar uma das 100 mulheres mais influentes no mundo, Simone Biles, esperança e símbolo maior de recordes nas Olimpíadas de Tóquio, "deu um passo atrás", para cuidar de si.

Na última terça-feira (27) ela abandonou a equipe americana no desafio final da ginástica de solo, durante a prova, depois de tirar uma nota baixa em sua primeira apresentação. "Tenho que me concentrar na minha saúde mental", declarou, depois de desistir, dois dias depois, também da final individual.

Talvez o seu gesto inaugure uma nova época em nossa relação com a saúde mental. Ao contrário da saúde física que pode ser objetivada em parâmetros clínicos consensuais, ostensivamente registrado no corpo, como distensões, luxações e rupturas, os efeitos psíquicos de uma situação nociva nem sempre se farão notar em limitações objetivas.

Isso se torna mais grave quando olhamos para o esporte como grande metáfora moral capaz de unificar nossa forma de vida, integrando trabalho, linguagem e desejo em um único vetor.

O esporte, especialmente o esporte profissional ou de alto desempenho, é o microcosmos de nossas relações de produção: fazer mais rápido, mais preciso, mais resistente, o que outros anteriormente fizeram, superar metas, vencer adversários, representar sua equipe, trabalhar em grupo, aumentar a performance e melhorar os resultados. Quem não ouviu tais expressões no mundo corporativo?

Sair fora da zona de conforto, destacar-se como alguém excepcional, tornar-se um herói para si mesmo, reconhecido pelos seus pares, como alguém de sucesso. Quem não avaliou sua vida nestes termos?

Superar-se, resistir, não desistir, não aceitar a derrota, não se submeter à dor. Quem não recorreu a esta linguagem moral?

No caso de Simone Biles, devemos acrescentar dois elementos que tornam esta matriz ética mais difícil e potencialmente sofrida: mulher e negra.

Incluída entre as dezenas de atletas abusadas sexualmente pelo técnico Larry Nassar e formada nos métodos de emagrecimento e disciplina do corpo e humilhação da alma de Bela Karolyi, ela desde cedo sofria com déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Como tantas crianças que diante de uma dificuldade ou de um sintoma são torcidas na direção contrária por uma prática ortopédica corretiva, ela foi logo introduzida em uma atividade que lhe demandava muita concentração e grande controle da motricidade: a ginástica olímpica.

Para um psicanalista não é uma surpresa encontrar um possível significante do sintoma ali mesmo onde o sujeito tenta se separar dele e superá-lo: um passo "para trás" —ou seja, interromper a necessidade infinita de progresso "para frente"— e "preciso me concentrar na minha saúde mental".

Nossa cultura, na escola, na família, na empresa e no esporte, já desenvolveu critérios para detectar limitações físicas que nos impendem de prosseguir, mas infelizmente desdenha ainda de critérios análogos quando se trata de contusões, estriamentos e hemorragias na alma.

O mais simples deles aparece no contraste entre Simone Biles e Rayssa Leal, nossa medalha de prata no skate.

Provavelmente Simone viu aquilo que era uma paixão infantil, exercida com prazer e gratificação intrínseca transformar-se em um exercício profissional de dor, desprovido de sentido, a nossa Fadinha ostentava diversão com seu estilo lúdico de vencer e dançar.

Ou seja, do ponto de vista do processo, do ponto de vista de como alguém se relaciona com o que faz, a diferença é muito grande, mas tudo isso desaparece quando só existem vencedores e perdedores, marcas e rankings.

Mas isso pode ser difícil de perceber, quando olhamos de fora e não conseguimos ler como é que alguém realmente está diante de seu estar com os outros. Isso acontece porque a moral do esporte-empresa se apoderou de nossas emoções prescrevendo sentimentos precisos que devem ser apresentados, na reunião de departamento ou na coletiva de imprensa, independente do que estejamos realmente experimentando.

Pior, quanto mais exímio na arte de manejar nosso papel social, ou nosso avatar digital, com independência e autonomia, em relação à pessoa real que opera as cordas do boneco, maior a dissociação, a anestesia e a incapacidade de perceber seu próprio sofrimento.

Quando todas as outras meninas abusadas desistiram ou pararam com a ginástica e Simone Biles decidiu continuar, ela tinha uma espécie de desejo, que talvez não fosse mais o mesmo do começo, mas que mesmo assim a colocava no jogo de novo, agora pela visibilidade das causas que ela passou a representar.

Mesmo assim quando recebeu a notícia de que a Olimpíada de Tóquio foi adiada em um ano, ela se sentou no canto do tatame de treinos e chorou, avistando mais doze meses de sacrifício.

Nesta hora, talvez ela tenha se lembrado de que como mulher e negra, desistir não é uma opção. Como americana jamais deixará seu time na hora que ele mais precisa. Como heroína, jamais se deixará vencer por um desafio tão curto como o domínio do sofrimento mental.

Foi assim também que se formou nosso sentimento viril diante do sofrimento psíquico, baseado no primeiro mandamento: "engole o choro".

Sinta vergonha ou culpa (senão nojo) de sua própria vulnerabilidade psíquica, desdenhe seus medos fóbicos, derrote a depressão com pensamento positivo, triunfe sobre a ansiedade com mais algumas gramas de fé, sinta-se humilhado porque você não é um super-psico-homem que aplicou uma camada de ferro-vanádio sobre suas fraquezas, tornando-se imune e indiferente aos sofrimentos dos outros.

Pensemos algumas trajetórias do judô. Larissa Pimenta, assim como Maria Portela, eliminadas injustamente choram. Rafael Buzacarini lutava contra o choro na entrevista depois de ser derrotado pelo campeão europeu. Todos os heróis colocaram em ato e compartilharam conosco a realidade dura de um desejo contrariado.

Ficamos tristes juntos, mas vimos eles darem o melhor de si. Compare isso com aquela declaração vazia e indiferente dos grandes craques de futebol que parecem estar lendo um "teleprompter" depois de uma derrota, ou pior, de uma vitória maiúscula.

Quando olhamos para as trajetórias de Ítalo Ferreira e Rebeca Andrade, surfando em pranchas de isopor e andando quilômetros para treinar, valorizamos ainda mais as suas medalhas, pois o sofrimento e a adversidade superada, aumenta a magnitude da vitória.

Por outro lado, poderíamos ser levados a consagrar esta narrativa da excepcionalidade de tal forma que a existência destes casos sugere aos demais: bastaria ter se sacrificado mais, bastaria ter aguentado mais sofrimento.

Isso não é bem verdade, muitas vezes o sofrimento só traz mais sofrimento mesmo, não transformando ninguém ou pior, criando sintomas psíquicos. Neste caso, seus triunfos não são boas representações para tantas outras trajetórias desprivilegiadas que precisam mais do que sofrimento e sacrifício para serem reconhecidas.

A moral da competição não vai mudar, e talvez nem deveria. Mas isso não impede que criemos mecanismos para reconhecer também as grandes derrotas, aquelas bem vividas, como as de Rafael, que entre lágrimas, pede desculpas. Escutamos que ele pede desculpas a todos os que tornaram sua trajetória possível, todos os brasileiros que torciam por ele e ficaram tristes e decepcionados, com ele.

Mas se não conseguirmos reconhecer as trajetórias médias, os autores médios, ou simplesmente aqueles que diante de resultados medianos, carregam ou representam trajetórias de grande empenho, excelência e dedicação, continuaremos a criar máquinas de moer corpos e almas, incapazes de dar um passo atrás, de pedir desculpas, de aprender com erros e fracassos.

Continuaremos a ser uma civilização de heróis que sofrem em silêncio e que enlouquecem sem piedade.