Topo

Blog do Dunker

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Assim nasceu o cringe: tecnologia mudou o tradicional conflito de gerações

Anna Shvets/ Pexels
Imagem: Anna Shvets/ Pexels

16/07/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Dando aula há mais de 30 anos pude acompanhar a transição entre os jovens que chegam à universidade. Até os anos 2000 os alunos pareciam sentir a faculdade como uma oportunidade de ascensão social e um espaço de convivialidade. Com a chegada da geração Y (os millenials) aumentou o "profissionalismo" e a situação escolar passou a ser sentida como um direito, quando não uma obrigação do Outro.

De repente não havia mais a irreverência e o desafio ocasional, esperada pelo conflito de gerações, mas uma mistura entre excesso de orientação para o desempenho de tarefas junto com certa indiferença relacional.

As coisas começaram a mudar de novo com a chegada da geração Z, nascidos entre 1995 e 2010. Mais desapegados de si, mais inclusivos, sofrem mais com suas incertezas e parecem mais tolerantes a indeterminações. Definitivamente não creem em um futuro glorioso e natural à sua frente.

O que não se esperava é que esta geração Z percebesse tão cedo como a geração anterior deixou um rastro de ruínas para eles pagarem a conta. O contra-ataque veio na forma de uma denúncia inesperada: a geração millenials é cringe.

Teoricamente as gerações se alternam, entre mais conservadores e progressistas. Simplificando: esperamos que em um dado momento uma geração negue e confronte a educação recebida da geração representada por seus pais. Mas a própria geração dos pais, antes disso, negou e confrontou a geração dos avós.

Surge assim uma lei da afinidade espontânea entre netos e filhos e a tendência para a aliança potencial entre gerações não contíguas. Os pais educam, os avós deseducam e os bisávós pervertem ... corre o ditado em minha família.

Com o adiamento da decisão de ter filhos, as gerações se espaçaram. Com isso muitas pessoas da geração Z têm seus pais na geração X e não na geração Y, que lhe seria contígua.

Desta forma o conflito de gerações teve sua lógica alterada. Temos uma geração de irmãos mais novos que se confronta com irmãos mais velhos, em torno de modelos de autoridade. Consequentemente a geração X envelhece mais rápido à medida que a disputa pela juventude mudou de lugar (hey boomer!).

A confrontação geracional é um modelo aproximado de como a cultura se transmite por meio de inversões, já observava Lacan em 1938.

Símbolos do conflito de gerações são o Maio de 1968 francês e os anos 70 americanos, que hoje são os homens brancos de cabelos brancos que dirigem países e companhias.

A chegada da vida digital, compulsória para os nascidos depois de 1995, acrescentou uma novidade nesse processo.

Desde então temos uma geração que adquiriu organicamente habilidades, dotadas de valor de mercado, que seus pais não possuíam. Isso já tinha concorrido para que geração millenial crescesse empoderada, fortemente identificada com a realização do futuro, mas sem grande apego a compromissos.

As comunidades digitais valorizam relações horizontais, mas também prescrevem um novo tipo de individualismo empreendedor, baseado no reconhecimento das pessoas em relação direta, não por cargos, funções ou institucionalidades. Absorvendo de forma endovenosa que a produtividade e a eficácia são a alma do negócio, tem baixa tolerância a lideranças inautênticas ou não meritocráticas. Exigentes e ambiciosos podem ser levados facilmente a crises ou mudanças abruptas de vida geradas por decepções de planos e aspirações.

Duas figuras poderiam ser convocadas para representar os Ys, os emos e os hipsters, cada qual definido por um pathos específico: de tristeza e afetação no primeiro caso, indiferença e ostentação no segundo.

Lembro-me de um colega professor que certa vez ao chegar para a aula constatou que todos os alunos usavam bigode, de estilo caracteristicamente hipster. Quando ele perguntou qual era a da brincadeira, recebeu uma série de imprecações e críticas de volta: afinal qual é o problema se todos nós decidíssemos usar bigode?

Outra vez, me lembro de estar em uma aula quando começo a escutar um gongo, destes de filme chinês, vigorosamente soando na sala ao lado. Como estávamos no fim, decidi seguir adiante com aquela trilha sonora mesmo. Na saída abordei o tal sujeito, na expectativa silenciosa que se tratasse de algum protesto, cuja originalidade me despertava certa simpatia. Perguntei amistosamente: qual é a do gongo? E a resposta veio fulminante: não é nada não, profe, só achei legal ficar tocando este som.

Em contraste com esta atitude de confiança exagerada, os habitantes da geração Z, que cresceram sob o impacto da recessão e da precariedade, vivem uma relação mais aguda de incerteza com relação ao futuro.

Já está claro que o domínio da tecnologia não garante segurança. É preciso combiná-la com preocupação social, senso de indignação e mudança real de práticas. São apegados ao trabalho, mas desde que este seja vivido com propósito. Em vez da indiferença arrogante daquele que reduz o tamanho do mundo para aumentar a extensão do eu, a geração Z está corroída pela incerteza real. Seu futuro traz ansiedade e depressão.

Enquanto os Y ostentavam a solidão como sinal de que "não precisamos de ninguém", os Z sofrem com a solidão digital e o medo de cancelamento.

Se a geração Y criou estilos, mais ou menos permanentes como grunges, clubbers, otakus, góticos, funkeiros, metaleiros, indies e nerds, a geração Z considera este tipo de identidade ligada ao consumo, ao gosto e a aparência, uma coisa um tanto infantil. Diante da identidade de gênero, raça ou classe e de suas implicações diretas para a vida das pessoas, isso tudo parece fútil.

Rapidamente a geração Z começa a perceber que a geração Y lida muito mal com o próprio envelhecimento e com a perda do status como "última novidade" em termos de estilo de vida. Invejados pelos "adultescentes" da geração X, por sua juventude e liberdade, são agora percebidos pela geração Z como inconsequentes incapazes de perspectivar suas vidas em engajamentos de longo prazo.

Enquanto a geração Y sofria com o peso da aparência, ao modo de anorexias, bulimias e transtornos somatoformes, a geração Z elevou a ansiedade e a depressão a um novo patamar.

Pela nova lógica transgeracional, a última geração julga a anterior como mais infantil, menos moral. Isso desperta esta curiosa forma de vergonha, chamada cringe.

Quando alguém entra na adolescência, tomando consciência mais clara de sua condição geracional, aparece sentimento típico: a vergonha dos pais. Jamais me levará naquela festa, muito menos aparecer na frente de meus amigos.

Os pais passam a simbolizar a criança dependente que um dia fomos. É como se quiséssemos apagar aqueles momentos dessagráveis que aliás, estes mesmos pais não cessam de nos lembrar. Eles são capazes de expor sadicamente nossas "infantilices", jogando na nossa cara incoordenações, tolices e bobagens.

Mas o cringe é algo completamente diferente disso. Não é vergonha de si mesmo, nem vergonha dos pais, mas vergonha alheia. Vergonha de que o outro não sinta a vergonha que ele deveria sentir por agir daquela forma.

Diante de liberdade ampliada, para fazer qualquer coisa da vida, com baixos teores de influência parental, o sujeito escolhe para si o uso regressivo da chupeta, no cultivo excessivo da imagem corporal, como se a pessoa fosse um cosplay de si mesma, sem falar nas práticas excêntricas ou "sem noção" em termos de responsabilidade afetiva e amorosa.

Tomar café ou vinho é cringe, porque vem com um discurso de superexcepcionalidade de si mesmo. Práticas como "FDS" para fim de semana, "rs" para riso, usar hashtag são sinais aparentes de "envelhecimento digital".

Chamar cerveja de "litrão" ou usar unha "francesinha" não são criticados apenas porque as modas mudam, mas porque a pessoa não percebeu que a moda muda. Curtir Harry Potter e Disney não é um mal em si, mas se presta a alegorizar que a pessoa pode realmente estar vivendo em outro mundo.

A própria palavra "cringe" remete a "dobrar-se ou agachar-se, especialmente com servilismo ou medo", variante do antigo "cringan" inglês "render-se, ceder, cair (em batalha); tornar-se dobrado" e do proto-Germânico "krank", "dobrar-se, encaracolar". Neste sentido os zenial estão apontando para a facilidade como os "mimimillenials" se dobram diante de dificuldades.

A conotação de "vergonha alheia" talvez derive da conjunção entre cringe e crank que literalmente quer dizer manivela, mais precisamente, a manivela que se acoplava a um barril para extrair água ou uísque.

Em alemão e holandês Krank é doente, fraco ou pequeno. Isso talvez explique por que a palavra chegou ao inglês como "fingidor, "vagabundo" ou "aquele que se enjoa para obter caridade" (1506). Uma imagem que define o crank é o da pessoa meio rabugenta, que gira a manivela, que repete julgamentos retorcidos ou extravagantes, em uma satisfação solitária, como a de um bobo alegre. Melhor dizendo um bobo triste, que gira sobre si mesmo.

A nova confrontação formada por gerações horizontais em disputa sugere perspectivas interessante do ponto de vista da transformação de formas de autoridade, não apenas verticais como ainda hoje temos entre as gerações Y e Z com a geração X, nem horizontais como parece acontecer entre a geração Z.

Talvez os millenials, que estão sofrendo bullying nas mãos do irmão mais novo e sendo deseducados pelos avós da geração X, possam criar autoridades transversais, onde as identidades possam ser vividas com menos peso e a implicação desejante possa tornar-se mais humorada.