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OPINIÃO

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Qual é a falha dos cientistas que dá brecha a conspirações contra a vacina

Ria Sopala/ Pixabay
Imagem: Ria Sopala/ Pixabay

14/05/2021 04h00

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A contínua resistência à aceitação de teorias científicas acerca da transmissão e da proteção contra o coronavírus SARS-CoV-2 levantou uma questão mais genérica acerca da relação entre a prática científica real e as suas diferentes traduções, em termos de tecnologia, aplicabilidade social, aderência e resistência diante dos saberes tradicionais, bem como o negacionismo ideológico.

Índices de 20% a 25% de pessoas que declaram resistir a tomar vacina se traduzem em práticas concretas de 2% a 3% de recusa real. Isso não anula o fato assombroso de que uma parcela muito significativa da população parece manter uma relação reticente com a ciência quando ela se transforma em política sanitária de Estado.

É o caso dramático representado pelo fato de que sete em dez brasileiros acreditam em fake news quando se trata da covid-19 e um quarto dos italianos leva a sério as teorias da conspiração quando o assunto é a doença.

Na mesma linha, 22,2% dos brasileiros acreditam que a Terra é plana; 50,7% creem que o coronavírus foi criado pelo governo chinês e 56,4% atestam que os hospitais são pagos para aumentar o número de pacientes mortos pela covid-19.

Uma parte deste desastre pode ser mais bem compreendida se levarmos em conta os argumentos de Paul Thagard em seu clássico "Como os Cientistas Explicam as Doenças?"[1].

Partindo de teorias como as de Lavoisier sobre a existência do oxigênio, contra a até então reinante hipótese do flogisto, para explicar a combustão, ele mostra como a aceitação das ideias científicas não é apenas uma questão de argumentos lógicos, evidências e demonstrações.

Cientistas possuem certas representações mentais sobre o mundo, que incluem, por exemplo, crenças prévias e interesses. Cientistas são percebidos como possuindo conexões sociais e participando em relações de poder, ainda que seja para manter seus financiamentos de pesquisa ou suas posições universitárias.

Contudo, o que caracterizaria a subcultura científica é sua capacidade de transformar as crenças prévias em novas crenças adquiridas, formada no debate com seus pares, com evidências experimentais e com a cooperação e concorrência entre modelos explicativos.

Crenças prévias determinam a racionalidade que servirá de teoria da prova, quais evidências devem ser selecionadas e que tipo de informante se torna confiável. Contudo as crenças científicas não moram em um lado isolado do cérebro ao qual tem acesso restrito apenas a opinião de especialista.

Thagard encontra seis tipos de explicações para as causas das doenças, sendo cinco delas contemporâneas e uma proveniente da antiguidade.

Para Hipócrates as doenças —por exemplo, a epilepsia, a melancolia ou a histeria— são causadas pelo excesso ou pela falta de um dos quatro elementos, componentes do corpo: sangue, fleugma, bílis negra ou sêmen, que replicam os quatro princípios formadores do cosmos: fogo, terra, água e ar.

A partir de Pasteur e da teoria dos germes, as doenças passam a ser causadas por micróbios, que produzem infecções que se apresentam como sintomas. Tais micróbios podem ser bactérias, vírus, protozoários, fungos ou príons, mas eles agem sempre como um objeto intrusivo que desregula o funcionamento do organismo.

Por trás desta explicação existe uma grande analogia, ou seja, as doenças são processos semelhantes à fermentação alcoólica, por exemplo, do vinho ou da cerveja, que sob ação do fermento transformam o sistema químico original dando luz a outras qualidades, também chamadas propriedades emergentes.

Mas a antiga teoria hipocrático-galênica da falta e do excesso sobrevive, em uma versão reduzida, sob forma das doenças causadas por problemas nutricionais, como falta de vitamina C no escorbuto ou de vitamina B1.

Também o caso das intoxicações e dos envenenamentos são versões deste grupo no qual a doença tem relação com o nosso sistema de trocas e seleção entre substâncias e sua absorção pelo organismo. Neste caso, a analogia não é com a transformação química, mas da troca entre o indivíduo e o meio, troca no interior da qual pode haver transbordamento ou déficit, conforme uma certa imagem hidráulica do adoecimento.

A terceira teoria moderna do adoecimento está representada pelas enfermidades autoimunes, cujo mecanismo etiológico foi descrito a partir dos anos 1950, como certas alergias, lúpus eritematoso e esclerose múltipla. Neste caso, o corpo torna-se hipersensível a si mesmo, se toma como um corpo estranho e começa a produzir reações de defesa a si mesmo. Agora a analogia é a um modelo do sistema elétrico, capaz de criar curto-circuitos, panes e sobrecargas.

O quarto modelo para entender adoecimentos procede da genética molecular e tornou-se efetivamente popular a partir dos anos 1980. Mas ficou claro também, naquele momento, que além das doenças explicáveis pela genética mendeliana (autossômica dominante ou recessiva, dominante ou recessiva) existem outras formas de determinação e de transmissão genética de doenças. A analogia neste caso se dá com relação aos programas de computador, hardware ou software, cuja falha impede a execução de tarefas.

A quinta teoria da doença é na verdade uma combinação das anteriores: as doenças multifatoriais, como o câncer. Em tese se trataria não de uma, mas de várias doenças que incidem sobre o funcionamento da célula, ou seja, um nível intermediário entre a genética molecular (poligênica e multifatorial), o dos tecidos e órgãos, que pode envolver vírus e infecções, mas também transtornos de imunidade e intoxicação. Aqui a analogia é com uma rede de computadores que distribuem tarefas e compartilham funções.

O desconhecimento sistemático do papel das analogias e metáforas, na própria construção do saber científico, a recusa a dialogar com os saberes comuns e o fechamento dos cientistas em pequenas comunidades, amplamente especializadas, nas quais a comunicação pode ser mais veloz e eficaz à custa de códigos bem específicos, pode ser a fonte e a raiz da resistência a aderir a práticas científica e de saúde sanitária, envolvendo políticas públicas.

Deixada à sua própria sorte a ideia de que um elemento estrangeiro seria inoculado no interior de nosso corpo, sob forma de vacina, permite que a analogia reprimida retorne sob forma de teoria da conspiração. Agora trata-se da "vachina", parte de uma tecnologia para dominar o ocidente e derrotar os americanos na corrida econômica.

Mistura de preconceitos étnicos (produtos chineses são mal feitos), de classe (os trabalhadores chineses são subqualificados, como quem lida com "faxinas") e de gênero (homem que é homem não deve se deixar passivamente tratar).

Os chineses são conhecidos por seus produtos eletrônicos, como computadores e eletroeletrônicos, mas também por atividades computacionais distribuídas, como a mineração necessária para as criptomoedas.

Vemos assim como as analogias dispersas, sobre os diferentes tipos de doenças, unificam-se em torno de uma mesma alegoria política.

Paranoias sistêmicas e delírios de perseguição proliferam virtualmente em torno de processos que não conseguimos explicar nem visualizar. Eles são sentidos como opacos, distantes e associados com o poder que passa a ser percebido como uma coisa una. Neste caso a heterogeneidade existente dentro das ciências —por exemplo, entre ciências exatas e ciências humanas— ou então as mutilações e hierarquias metodológicas e temáticas que o edifício institucional da ciência erige, como uma espécie de clube de elite intelectual.

Há outro detalhe que costuma impulsionar a megalomania ativando teorias de conspirações, ou seja, a "vacilação" do sistema. O fato de a ciência não ter respondido em uníssono, de modo imediato e automático, à epidemia de covid, o fato de haver incerteza inicial sobre o mecanismo etiológico bem como a indefinição dos limites exatos do processo de contágio abre uma brecha para que se perceba a incompletude da ciência.

Ocorre que para muitos esta incompletude da ciência não pode ser aceita como a ignorância, incerteza e tarefa futura para a conquista do conhecimento. Em vez disso a compreensão conspiratória das doenças recobrirá a perturbação da unidade, solidez e autoridade da ciência, suplementada por um sistema ainda maior e mais poderoso. Surge assim um sistema de crenças refratário a contradição e a informação.

Para reverter isso será preciso rever a oposição, hoje consagrada, entre o naturalismo das ciências duras e o analogismo das ciências humanas.

REFERÊNCIA

[1] Thagard, Paul (1999) How Scientists Explain Disease. Princeton: Princeton Press.