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Blog do Dunker

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Espiar o perfil do ex é traição? Saiba o que é infidelidade na era digital

Jills/ Pixabay
Imagem: Jills/ Pixabay

19/03/2021 04h00

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Já escrevi que o casamento é uma espécie de perversão consentida, expressão de uma normalopatia para a qual não conseguimos inventar coisa melhor até agora. Isso não impede que eu, como tantos psicanalistas, seja um ardoroso defensor da vida amorosa continuada a dois. A fidelidade envolve, portanto, duas coisas que se sobrepõem, mas que são distintas: lealdade e compromisso.

Haveria assim dois tipos fundamentais de infidelidade:

  1. Aquelas nas quais o motivo envolve vingança, crueldade ou retaliação, no qual o ato geralmente vem acompanhado de falta de cuidado, desleixo ou descaso e;
  2. Aquelas que se movem pela transformação do laço comum, pela suspensão não declarada do comprometimento com ideais e sentimentos acordados ou construídos pelo casal.

A primeira, muitas vezes é uma tentativa de iniciar um processo de dissolução ao passo que a segunda pode ser uma tentativa de reinício da relação. Ambas, é claro, podem acabar mal, conforme as intenções tácitas.

A primeira é o início do fim de uma relação, uma forma de testar-se, autorizar-se ou de experimentar-se "já fora da relação", restando a superar então a coragem ou a covardia diante a separação.

A segunda geralmente faz parte do próprio estado de coisas de uma relação. Ela quer lembrar como acontece o amor, ou então recuperar as cenas primordiais da paixão, ou ainda reatualizar fantasias sexuais aposentadas pela familiarização da relação.

Ou seja, o primeiro tipo de traição cria pretexto para "ir embora" ou o ainda mais covarde "ser mandado embora", ao passo que o segundo é um pedido desesperado de "como faço para começar de novo isso aqui" (seja com você, seja com outro).

A vida digital potencializou enormemente as variedades exploratórias destes dois tipos.

Agora eu posso ir ver meu antigo amor da oitava série, ele me responde com três filhos e uma existência insólita com a minha, mas com a persistência da lembrança de uma grande paixão.

Posso teclar apenas para ver como seria a reação de mim mesmo pronunciando palavras tórridas e românticas que tenho vergonha de dizer para minha própria esposa. Posso fazer isso protegido por um pseudônimo. Posso também experimentar fantasias sexuais das quais tenho medo só de pronunciar.

É como se a traição, antes definida por um ato técnico de especificação criminológica do tipo "fumou mas não tragou", "chupou mas não engoliu", "beijou mas não penetrou", agora admitisse uma graduação infinita: "pensou mas não disse", "postou mas não mostrou", "se inscreveu no Insta, mas não curtiu", "curtiu mas não se inscreveu".

O segundo tipo de traição, de natureza recompositiva, ocorre como uma espécie de reinício, de remédio ou de sintoma da relação atualmente em curso.

Para os que se sentem traídos ou já passaram por esta experiência, isso pode cair como uma hipótese inadmissível. Contudo podemos reconhecer melhor seu funcionamento nos outros.

É o caso da mulher que trai com os mesmos traços, condições e evidências que caracterizaram seus primeiros passos na vida desejante. Neste caso trata-se de uma espécie de reaprendizagem, de revivescência que permitiria "lembrar como foi", eventualmente para reencontrar seu parceiro ou para definitivamente abandoná-lo. (Sim, isso existe, trair seu marido com um clone esquecido "dele mesmo"). É também o caso das infidelidades rodrigueanas, que procuram reinventar o desejo pela métrica de um terceiro.

Digo que o casamento é uma perversão consentida porque é ridiculamente infantil e ilusório, além de um autoengano trágico, imaginar que ao escolhermos uma pessoa estamos renunciando ao desejo —vindouro, indiscernível e incalculável— por todas as outras.

Esta mágica da escolha unicista é irreal e nos faz esperar algo que o mais forte dos amores não pode dar. Ela nos faz confrontar a realidade mais amarga do desejo, ou seja, de que ele não é algo que se possa possuir em estado de garantia, como um dia obtivemos de nossos pais que, incondicionalmente e independente do que fizéssemos nos retribuíam com amor.

As outras formas de desejo e de amor são todas precárias e provisórias, ou seja: "não fez por merecer, perdeu".

Inversamente, a capacidade de "desejabilidade" por um terceiro pode aumentar minha própria disposição desejante por alguém até o ponto em que a corda arrebenta.

Contudo, o tipo mais difícil de reconhecer e de abordar quando se trata de infidelidade é aquele que de fato não tem que ver com o parceiro, mas com o vazio que causa o nosso desejo além de todo e qualquer outro amoroso com quem temos uma vida comum.

É este tipo de traição, que se dirige à curiosidade de experimentar o novo pelo novo, de querer algo diverso simplesmente pelo prazer da diversidade, que precisa ser respeitado.

Este é o mais difícil de admitir por que ele não remete a nenhuma impropriedade, deficiência ou dificuldade do parceiro, mas ao evento improvável que um dia nos fez unirmo-nos a ele que é a devastadora experiência do desejo.

Ou seja, é a traição que não aponta para o passado de uma relação insuficiente, mas às vezes para o sucesso absoluto daquela parceria. Ela realizou tudo o que podia desejar em seus próprios termos. Ela foi um projeto concluído e para o qual não inventamos, ou não queremos inventar nenhum puxadinho ou extensão de linha, o que muitas vezes degradaria o trabalho feito.

Muitas vezes os filhos são o termômetro e termodinâmica deste tipo de tarefa.

A chegada de filhos introduz um símbolo da passagem de mulher para mãe. A maternidade bem como toda a gama de familiaridades que ela introduz tem um efeito necessariamente "deslibidinalizante".

Eles são fonte de nossa maior alegria, mas também de nossas primeiras estrias. Eles nos dão a certeza de um amor futuro, mas também nos lembram de um estado contínuo de demanda e preocupação que tendencialmente ocupa nosso espaço psíquico, eventualmente roubando precioso tempo de nossa libido. Sem falar no encabulamento espontâneo que eles criam para as manifestações eróticas de um casal no curso do dia a dia.

O primeiro candidato disponível a destinatário de nossas insatisfações, causa mater e primeira de nossos infortúnios é o marido. A segunda (na qual ele aparece como causador indireto) são os filhos. Muitos maridos se sentem traídos porque suas esposas agora amam mais os filhos do que eles mesmos, e o inverso, apesar de mais raro, também acontece.

Boa parte disso advém do recalque que erguemos contra os sentimentos hostis que temos para com nossos filhos, aliás desde que eles nascem (e choram de cólicas roubando-nos noites irrecuperáveis). Não é pequena a culpa social por primeiro querer jogá-los pela janela (quando bebês), depois trancá-los em uma gaveta (na adolescência) e finalmente desejar que eles se vão para o mundo (na vida adulta).

Quando ainda temos que aturá-los tenros e desejantes, esbeltos e vivazes, como um dia fomos, e logo deixamos de sê-lo (coincidentemente quando eles chegaram), a inveja inconsciente costuma apresentar efeitos devastadores, muitas vezes acumulados e expressos em fantasias paranoicas de ciúmes e traição.

Aliás a figura do pediatra possui um erotismo potencial para jovens mães que ainda não foi tematizado na literatura. A competição entre pais e filhos ou entre mães e filhas torna-se o ingrediente fundamental para, em caso de decepção na vida, convocarmos nossos filhos para pagar a conta.

Isso nos recoloca de novo no estado digital da gradualidade infinita dos modos de infidelidade, pois eles refletem modos múltiplos de descompromisso e neocompromisso, de deslealdade e de lealdade.

Cresce exponencialmente o número de mulheres em "estados informulados de espírito": enroladas, quase amasiadas, pré-divorciadas, em moratória amorosa, em férias coloridas, esperando retorno improvável, demissionárias da procura amorosa, soltando frangas (ou em frangalhos), aposentadas do desejo, devastadas, em fase de profissionalização e treinamento para uso de sites de relacionamento, politraumatizadas, retornando à ativa depois dos 60 e assim por diante.

Adoramos nomeações, porque nomes são contratos e nossa insegurança psíquica adora se aparar neste tipo de coisas. Mas o forçar o compromisso não garante a lealdade, que é o que muitas vezes está por trás de nossa demanda securitária.

Menos do que forçar nomeações ou de torná-las mais criativas, esta gradualização recoloca em primeiro plano o que chamamos de lealdade, ou seja, aquele sentimento que temos para com o outro, mas, além disso, para com a história que temos com o outro, para com o caminho que nos trouxe até ali.

A lealdade está profundamente ligada ao "nós" que um casal consegue construir, e esta é uma substância atualmente ou em falta ou excessivamente disponível em formatos paranoicos e descompromissados. O "nós" tem um espaço, tem fronteiras e peculiarmente tem uma trajetória temporal.

A graça desta experiência é que só descobrimos do que ela é feita e qual é a sua verdadeira extensão quando ela é rompida ou ameaçada.