Topo

Blog do Dunker

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Mais que Tinder: conhece as fantasias que impedem você de vencer a solidão?

Hilary Clark/ Pixabay
Imagem: Hilary Clark/ Pixabay

09/03/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Muitas mulheres solitárias imaginam que a vida em companhia de outrem é muito mais interessante e divertida, interpretando a solidão como uma forma básica de fracasso ou rejeição. Isso se aprofundou com a disponibilidade digital de imagens de felicidade, muitas vezes associada com uma companhia.

A descrição é recorrente, mas cuidado, a grama da vizinha pode não ser grama de verdade, mas capim ou pior, grama sintética.

As que invejam a vida de autonomia e independência, que sonham com cinco minutos de suspensão nas demandas diárias da "mulher elástico" querem se ver livres de algo, enquanto as que querem encontrar uma vida comum, estão procurando construir algo. Enquanto as primeiras querem tirar algo de suas vidas, as segundas querem acrescentar.

São dois tipos de desejos diferentes. O primeiro está movido pela fuga do desprazer, o segundo pela busca da satisfação.

São tipos que extraímos da estética de Leonardo da Vinci, que dividia as artes entre as que operam pela via de porre, como a pintura, onde se acrescenta tinta a uma tela vazia, e as artes que caminham pela via de levare, onde se retira algo, como o escultor que extrai a estátua da pedra de granito.

Menos do que a inveja em si, que é um afeto estrutural de nossa época, o problema está no destino ou no tratamento para a inveja que nos torna todos, todas e todes versões melhoradas de Madame Bovary.

Lembremos que esta personagem de Flaubert estava casada, tinha um filho e uma vida feliz e tranquila. Mas ela não conseguia se desligar do perturbador desejo de ter outra vida.

Este desejo de ser outra, de encontrar amantes, de viver tórridos romances, de recomeçar em outras bases, de mudar o mundo, de reinventar a vida, de morar em outro país, é muito importante. Sem ele é provável que sua vida sexual vá para o buraco (mesmo que seja o buraco na grama da vizinha, aquele buraco que de longe não conseguimos ver).

Aqui o efeito digital torna nossa impotência ainda mais dolorosa, porque sua mensagem subliminar é: "os recursos e ferramentas estão todos disponíveis, basta o seu desejo de empregá-los". Como se depois de Tinder, Badoo, Happn, POF (Plenty Of Fish), AdoteUmCara, Bumble, Once, Grindr, Wapa, OkCupid e tantos outros só fica sozinho quem quer. Isso só é meia verdade porque se os meios para o primeiro encontro são digitais, as razões do coração, para o segundo encontro, permanecem analógicas.

Muitas mulheres do segundo grupo, aquelas que querem se livrar de algo ou alguém, não se separam, ou não se dedicam realmente a encontrar um grande amor, como as do primeiro grupo, porque isso significaria expor este sonho de Bovary ao duro teste de realidade. Teste pelo qual nossos desejos frequentemente se desgastam, se modificam e afinal cobram seu preço.

Sob certas circunstâncias cuidamos muito bem para que nossas fantasias continuem a ser fantasias. Ou seja, quando decidimos, finalmente, comprar aquele ticket de viagem, sem volta, para a Austrália ou Nova Zelândia (quando isso era possível) estamos pondo em risco nossa fantasia de um lugar perfeito, de um destino glorioso.

Isso funciona como um jardim secreto, uma espécie de refúgio imaginário para o qual sempre podemos voltar quando as coisas não estão indo muito bem.

O plano B da vida não pode ser posto em risco de realidade impunemente. Renunciar a fantasias é sempre um risco, e arriscá-las em um confronto com a realidade é uma ótima maneira de fazer com que elas deixem de ser fantasias. Muitas vezes isso exigirá um trabalho psíquico, muito difícil de criar, também conhecido como Plano C.

É comum que mulheres dos dois grupos, tenham certas dificuldades em ler o desejo masculino. E isso piora quando temos cada vez mais mulheres que fazem exatamente as mesmas coisas que os homens no universo laboral, político, na esfera jurídica, no campo sexual ou do comportamento.

Isso tudo não significa que o valor do desejo seja o mesmo nos dois casos.

Frequentemente os homens têm uma fantasia "contratualista" sobre o desejo feminino, ou seja, como se tudo o que as mulheres querem fosse capturar, controlar e domesticar o desejo masculino. Fazê-los assinar uma espécie de "cheque em branco". A forma como isso acontece é o contrato de natureza religiosa, jurídica ou moral.

Por isso o tema da fidelidade costuma ser a marca simbólica, uma espécie de insígnia ou prova de "envolvimento", substituindo o que antes seria chamado de "prova de amor".

Ocorre que esta fantasia que os homens fazem sobre o desejo das mulheres, isto é, de que para elas tudo se resume a "aprisionar o gato na gaiola" interfere no desejo feminino. E isso pode gerar duas respostas problemáticas.

A primeira é tentar esconder a fantasia de que sim, uma vida comum, com filhos, gatos e quetais seria bem legal. Isso pode evoluir para uma espécie de filme, cujo roteiro já foi escrito, os papeis definidos só faltando para sua conclusão e entrada em cartaz achar o "ator" adequado.

Ora, ninguém gosta de entrar em um filme que já está feito. A graça de se envolver com o outro é criar o roteiro junto, discutir a iluminação, escolher a trilha sonora, alterar dramaticamente o roteiro. Ou seja, a maior parte das pessoas não está nem na arte de porre nem de levare, mas no cinema, que é uma combinação das duas.

Este excesso de definição do desejo é um problema e atrapalha mesmo. Saber demasiadamente o que se quer não deixa muita margem para o outro entrar, e nos surpreender.

É um problema que se torna mais e mais agudo porque com o retardo cultural da decisão de se tornar mãe, a maternidade pode acabar se cruzando com a escolha amorosa, o que pode complicar as coisas.

Nem sempre o melhor marido será o pai que você quer para seus filhos, e assim reciprocamente.

A segunda resposta problemática é tentar convencer o outro, e muitas vezes a si mesma, que qualquer indício de falta, carência ou insuficiência denota fraqueza, vulnerabilidade e expectativas de um amor dependencial.

Neste caso uma vida bem realizada, com boa posição econômica ou cultural pode ser um problema real pelo seguinte fato: a admiração é um elemento chave para ligar sexo e amor nos homens. Sentir-se admirado por uma mulher é algo excepcionalmente relevante para a fantasia masculina. Ocorre que a admiração depende da distância.

Se nos colocamos muito perto de uma pintura, ou muito longe, não conseguimos admirá-la. Se uma mulher é excepcionalmente bem dotada, segundo atributos que um homem valoriza, ele pode imaginar: "ela não será capaz de me admirar, eu não conseguirei me manter admirável por muito tempo, e não me sentido admirado não acho que eu a mereça".

Isso explica porque muitos homens ricos, poderosos e bem dotados trocam suas admiráveis e interessantes esposas por mulheres aparentemente simples, humildes e pouco dotadas. Elas têm algo que as bem resolvidas e superpoderosas não podem oferecer: a admiração real e persistente por um homem.

Por outro lado, homens que sentem que não podem oferecer muito para suas pretendentes "turbinadas" retiram-se com a sensação de que a elas não lhes falta nada, que elas estão muito bem "consigo mesmas" e que no fundo não há espaço para mais ninguém além delas mesmas em suas vidas.

A única função que poderiam ter na vida destas mulheres é a de fiel servidor ou de extensão de seus interesses, o que não é uma posição muito favorável para o desejo viril.

Moral da história: às vezes menos é mais.

Diante deste quadro a oposição entre casada ou solteira apresenta muito mais do que 50 tons de cinza. Jamais abandone a vontade de "estar do outro lado", mas não esqueça de que lá tem grama, mas também capim, capim-santo, erva daninha, formigueiro, taturana e lagartixa.

De longe o quintal da vizinha é sempre mais verde, nem por isso será o Allianz Parque da sua fantasia.