Topo

Blog do Dunker

Da discussão no WhatsApp às eleições, é possível pensar de outras formas

Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL), candidatos a Prefeitura de São Paulo - Arte/UOL
Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL), candidatos a Prefeitura de São Paulo Imagem: Arte/UOL

27/11/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Meu filho devia ter uns oito ou nove anos quando saiu-se com a seguinte declaração:

"Agora que eu tenho provas na escola, vocês precisam entender como é. Fiz uma de prova de pais. Vocês até que são bons pais, mas têm duas coisas que têm que melhorar: a série e o plausível".

Olhei para minha esposa com aquela cara de "esperando sinal da torre de controle". Ele explicou:

"Não aguento mais esta história de série". (E eu pensando que era quinta série, sexta série ou coisa assim). "Tudo o que eu faço vocês dizem: às vezes a gente acerta, outras erra, mas o importante é a série. Por isso, às vezes, você faz uma coisinha errada e leva um broncão danado. É que o último elemento forma uma série".

Reconheci imediatamente minha aplicação tosca da noção estruturalista de "série" à educação. Tentando explicar que séries de repetição formam estruturas de sentido, que depois começam a mandar em você, antecipando o sentido de seus atos, eu tinha criado um pequeno monstro cognitivo.

A explicação do "plausível" veio com um exemplo empírico:

"Lembra aquela vez que sumiram as bolachas do pacote? E eu estava com farelos de chocolate caindo da boca? Pois eu expliquei muito bem tudo o que tinha acontecido". (Inclusive a participação decisiva da irmã na operação.)" E mesmo assim vocês usaram este truque sujo do 'plausível'. Estou cheio deste plausível. A gente conta uma história gigante e vocês vêm com esta de 'mas não é plausível'. Não sei por que vocês não acreditam em mim?"

Desta vez era minha esposa que segurava o riso enquanto oferecia um abraço reconciliador junto com a promessa de extinção destes dois procedimentos impiedosos.

Ou seja, o que chamamos de guerra de narrativas é uma disputa entre os significantes que escolhemos para compor a série e para dar plausibilidade para sua conexão interna. Mas se queremos ouvir as crianças nem tudo se resume a isso.

Escutando processos de decisão de voto para a eleição de domingo (29), a guerra digital dos memes e as trocas intensificadas de mensagens nos grupos familiares de WhatsApp, me lembrei desta cena infantil.

De parte a parte se escuta uma comparação entre séries: as sucessivas gestões do PSDB em São Paulo, formam uma regularidade cuja razão é a "experiência" ou o "continuísmo"? Se contamos com Erundina, a série do PSOL ganha da do PSDB, mas sem o desabono da continuidade. Se incluirmos na série a recorrente substituição pelo vice, a eleição foca-se sobre Ricardo Nunes, vice de Covas, que recusa-se a comparecer a entrevistas, debates ou sabatina.

Enquanto a noção de série compreende a definição ou exposição das regras que comandam nossas decisões, o plausível aborda o ângulo oposto da questão, ou seja, o caso ele mesmo. É plausível que Boulos consiga governar com uma base de vereadores tão pequena? Seria sua experiência junto aos pobres e periféricos aplicável à administração das grandes ou pequenas fortunas orçamentárias?

Enquanto a série olha para o passado, o plausível enxerga o futuro. Daí que as narrativas de campanha oponham, o "pés no chão" neste momento de crise ao vamos "recuperar nossa capacidade de sonhar". Daí também que os jovens estejam com Boulos e os idosos com Covas.

Podemos escolher pela série, pela plausibilidade, mas também podemos escolher, por recusar as encruzilhadas tais quais elas nos são apresentadas, como queria meu filho. Este é o sentido positivo de "radicalismo", conforme sua origem linguística em raiz, fundamento ou rádice, ou seja, momento da árvore antes dela se ramificar.

O sentido negativo de "radical" é aquele que aponta para a bagunça e incerteza daqueles que recusam a oposição entre a série e sua plausibilidade. Coloque o significante na série que você prefere.

Manifestação em frente à loja do Carrefour em Porto Alegre (RS) onde João Alberto Silveira Freitas, conhecido como Beto Freitas, foi espancado até a morte - Hygino Vasconcellos/Colaboração para o UOL - Hygino Vasconcellos/Colaboração para o UOL
Manifestação em frente à loja do Carrefour em Porto Alegre (RS) onde João Alberto Silveira Freitas, conhecido como Beto Freitas, foi espancado até a morte
Imagem: Hygino Vasconcellos/Colaboração para o UOL

Quando Beto Freitas foi assassinado brutalmente por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, sob o flagrante público das câmeras, vimos emergir a série do racismo estrutural, ou seja, não é apenas um "caso isolado".

O que seria mais radical: manifestações de represália ou a morte deste jeito? A leitura alternativa enfatizará a plausibilidade do acontecimento pedindo mais contextos e exame de circunstâncias. Elas não eximem o crime, mas o tornam mais compreensível: "e se ele tivesse xingado a caixa", "e se ele fosse um péssimo pai de família?".

O ponto de vista alternativo não pode apelar para algum princípio alternativo, mas ele pode, legitimamente, suspender a pressa da conclusão, invocar o direito a dúvida como princípio dos princípios, que rege todo julgamento moral, científico ou jurídico.

A verdadeira justiça sempre preza pelas circunstâncias: recolhimento de provas, acareação de testemunhas, argumentos a favor e contra exame ponderado da lei, aplicação do fato ao seu valor jurídico.

Celerados eram os comparsas do Marquês de Sade, que queriam justiça a sangue quente, aqui e agora. Apressados ou céleres são estes que, como queria Descartes, erram porque concluem cedo demais ou pré-julgam.

Neste ponto o leitor pode objetar que julgamentos digitais e a lógica das redes sociais simplesmente aboliram este balanço porque o lento não existe mais. O lento é o mundo real, e este, sabemos que não funciona. A elucidação paciente dos fatos com detalhamentos de circunstâncias e condições, não pode competir, em termos de mobilização de afetos, como o ódio e a indignação.

Mas às vezes, como queria Lacan, é preciso subverter os termos do problema e buscar um ato que se adianta à compreensão, mostrando que as escolhas podem se dar em outros termos.

"Carrefour" em francês quer dizer "encruzilhada", e de fato este tipo de acontecimento nos coloca diante de uma decisão que parece suspender a lógica que opõe a série ao plausível.

Ortega y Gasset, pensador conservador espanhol, dizia "eu sou eu e minhas circunstâncias", ou seja, eu e minhas encruzilhadas. Arthur Rimbaud, poeta revolucionário francês, afirmava "o eu é um outro", ou seja, eu não sou nem mesmo apenas e somente eu mesmo.

Votar segundo a série ou de acordo com a plausibilidade não é prerrogativa da esquerda ou direita. Há a série contínua da direita, com seus 24 anos de governo, no estado ou no município, em São Paulo. Há também a série de esquerda, com seus acertos e erros. Fez parte dela o afastamento punitivo do PT em nome da benéfica alternância de poder.

Alguns dizem que o renda cidadã e demais investimentos propostos por Boulos são pouco plausíveis do ponto de vista fiscal. Outros argumentam que é menos plausível que Covas faça, nos próximos anos, o que não fez até agora.

Todas estas diferenças são circunstâncias. Como são circunstâncias o partido, o vice, a economia local e global, a democracia local e global. É plausível que não exista segunda onda de covid em São Paulo, como afirma Covas? Questão em aberto para a verificação de fatos.

O ganho que parece haver nesta eleição é que, excetuando-se as dúvidas que pairam sobre o vice de Covas, em torno de seus envolvimentos com o sistema de creches ou de sua defesa do Escola sem Partido, todos os outros são percebidos como concorrentes legítimos e representativos na esfera pública.

Com isso parece que estamos gradualmente superando a retórica que exclui pessoas de sua dignidade política, demoniza adversários e propaga o negacionismo sanitário. Espero que ao final superemos também, como queria meu filho, a lógica simples da série e da plausibilidade.