Topo

Álvaro Machado Dias

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A próxima revolução tecnológica será quântica. Você sabe o que é isso?

Interior do sistema de computação quântica IBM Quantum - IBM
Interior do sistema de computação quântica IBM Quantum Imagem: IBM

30/04/2021 04h00

Uma das tendências da tecnologia mais radicais e promissoras é a dos computadores quânticos.

No fim do mês passado, a startup IonQ anunciou que iria lançar ações na bolsa de Nova Iorque (Nasdaq). IBM, Microsoft e outras possuem modelos de negócios bem estabelecidos na área, mas esta é a primeira vez que uma empresa vai do quintal à Dow Jones, baseando-se nos fenômenos físicos que deixaram Albert Einstein de cabelo em pé.

A trajetória meteórica da IonQ reflete o recrudescimento da empolgação com a aplicabilidade prática de fenômenos quânticos como o entrelaçamento (fundamento maior do bit quântico ou Qbit), o princípio da incerteza (fundamental para a internet quântica) e a capacidade de usar a informação como "combustível".

Isso tudo está baseado em uma mudança profunda de paradigma, que ainda não chegou à maioria das pessoas, apesar de ter mudado para sempre o entendimento especializado sobre como funciona o mundo, na escala das coisas bem pequenas.

O artigo de hoje discute essa mudança de entendimento. A ideia não é entrar em debates mais técnicos, mas olhar transversalmente para a essência desta tal era quântica.

Tudo começa com Isaac Newton. O cientista e intelectual inglês fez muito mais pela humanidade do que simplesmente revolucionar a física, a astronomia e a matemática. Newton abriu o portal para uma nova forma de entender o que existe, eternizada na imagem do universo como um imenso relógio, cuja precisão mecânica seria a própria expressão do divino.

Newton é o precursor da ideia de que podemos fazer a engenharia reversa de todas as coisas e assim chegarmos à sua essência. Ele mostrou como o Sol e a Terra interagem à distância e deu outro sentido à maçã, que até então se contentava em exercer papel de vilã nas narrativas imaginárias.

Muitas das ideias mais famosas da modernidade são newtonianas.

Tome por exemplo a ideia de que o aparelho psíquico é como um microscópio, com suas instâncias ou lentes, que Freud introduziu no livro a Interpretação dos Sonhos. Trata-se de uma ideia mecanicista, próxima de Newton a ponto de usar um objeto ótico como referência. Os exemplos similares são inúmeros.

Já escrevi um bocado sobre a natureza do pensamento intuitivo, em contexto decisório. Bom, a verdade é que nossas intuições mais elementares são inferências tácitas de um mundo newtoniano. Aquilo que sobe, desce. A boneca atirada com força segue uma trajetória que os olhos antecipam, ao passo que o carrinho que desliza sobre o tapete rapidamente engripa. Esse tipo de entendimento serve de instrução para que nos mantenhamos vivos, já as coisas em escala natural manifestam-se sob princípios que Newton ajudou a formular.

O que é mais surpreendente é que Newton foi muito além da formulação da física do que é observável e cotidiano. A ideia mais bela e profunda a qual se dedicou é a da conservação de movimento. As coisas paradas não saem andando do nada, enquanto as coisas que deslizam sem fricção seguem em seu curso por tempo infinito, conceito que não faz nenhum sentido na esfera do que se pode conhecer diretamente. Com ideias como esta, Newton nos livrou de éteres e objetos com vontade própria, herdados da Grécia antiga. Ele não só mapeou intuições sobre como o mundo visível funciona, como ajudou-nos a expandir os horizontes das nossas abstrações, que se tornaram a marca registrada do pensamento ocidental moderno.

Porém, duzentos anos depois de ter iniciado uma verdadeira revolução cognitiva, as ideias newtonianas foram colocadas em cheque pela mecânica quântica, uma das maiores descobertas intelectuais de toda a história da humanidade, a qual colocou de pernas para o ar o entendimento científico, assim como também o imaginário.

IonQ apresenta a geração mais recente de sua armadilha iônica, estrutura empregada na computação quântica - Kai Hudek/ IonQ - Kai Hudek/ IonQ
IonQ apresenta a geração mais recente de sua armadilha iônica, estrutura empregada na computação quântica
Imagem: Kai Hudek/ IonQ

No mundo daquilo que é pequenino, as coisas não estão aqui ou ali para serem definidas em sua trajetória e identidade, mas habitam ondas de probabilidade, fixadas pela observação. Elas parecem que foram inspiradas naqueles brinquedos malandros de Toy Story, que se atiram ao chão inertes quando a porta do quarto é aberta.

Do outro lado desta porta, podemos escutá-los brincando, mas como eles voltam ao plástico e ao pano se diretamente flagrados, muitos consideram que são brinquedos ordinários e animados ao mesmo tempo.

A ideia de que preferem ser uma metamorfose ambulante é estranha, conforme Schrödinger sinalizou com seu experimento mental do gato que poderia estar vivo e morto ao mesmo tempo—. Alguns físicos famosos consideram que possua lacunas intransponíveis e isto vem levando à popularização de uma alternativa que diz que não são os estados simultâneos que se multiplicam, mas os universos em que as coisas existem de maneira exclusiva. Esta é a hipótese dos multiversos (MWI), que Hugh Everett propôs em 1957, um pouco antes de abandonar a física para sempre, e que Sean Carroll vem convertendo em best sellers e artigos na grande mídia.

Tecnicamente, a discussão é se há o colapso da função de onda ou não, mas como eu disse, nada de entrar por esses caminhos mais ermos, que não contribuem em nada para o nosso objetivo de hoje, que é formar uma visão sobre esse admirável mundo novo, que só tem um século de vida e, por isso, permanece pouco conhecido.

Assim, seja em seus estados indefinidos ou através de multiversos, cuja existência pressupõe que a tessitura do mundo esteja se tornando cada vez mais fina, conforme mais e mais bifurcações são criadas no universo, caso é que as coisas podem existir em estado de entrelaçamento, que é um tipo de identidade profunda a ponto de tornar a descrição de uma partícula o espelho da descrição de sua contraparte.

Não é que nem aqui, onde dizemos "estamos juntos, cara" e seguimos separados. No campo dos fenômenos quânticos (isto é, enquanto a perda de coerência não fala mais alto), aquilo que ocorre com uma partícula afeta sua contraparte, mesmo que estejam distantes há milhões de anos, em prisões de chumbo dispostas em pontas opostas da galáxia.

O entrelaçamento quântico é um verdadeiro estranhamento quântico, descortinando verdades contrárias às intuições que vêm conosco de fábrica. Porém, no meio dessa história, uma coisa importante vem mudando. Fenômenos quânticos estão sendo descobertos no coração da realidade diretamente acessível, implodindo divisões, que em sua essência todos sabem que não se sustentam.

Plantas absorvem 10 elevado a 17 joules de energia solar por segundo e você deve ter notado que elas não se aquecem com isso, ao contrário dos motores que nós fabricamos. A explicação está no tempo para converter a energia recebida em carboidratos, que é o jeito desenvolvido para aproveitá-la.

A transformação é praticamente imediata porque as plantas usam entrelaçamento quântico para mover o processo de fotossíntese para frente mais rapidamente. Assim, ao invés de processar reações individualmente nos diferentes cromatóforos, as plantas "sincronizam" isso tudo, de maneira quântica.

Outro exemplo: 20% das aves migram distâncias enormes. Algumas andorinhas chegam a voar 70.000 quilômetros, entre os polos e também na linha do Equador. O abutre dos Himalaias voa a 9.000 metros de altura, passando sobre alguns dos picos mais altos do mundo.

Como essas aves se localizam em meio a tamanho desafio? Como sincronizam seus voos, ao invés de se perderem umas das outras no caminho? A resposta provável diz que o entrelaçamento quântico permite-lhes "enxergar" o campo magnético do planeta.

O olfato humano é o nosso grande sistema de investigação do caráter saudável das coisas. Segundo um estudo recente publicado na revista Science, nosso sistema olfativo é capaz de processar cerca de um trilhão de cheiros. Ainda não está claro como é implementada esta capacidade toda, mas uma hipótese que vem ganhando popularidade é a de que isto envolva tunelamento quântico, que é a capacidade da função de onda de atravessar barreiras físicas.

É cedo para saber, mas nunca é tarde para lembrar que conseguimos perceber a diferença entre isótopos pelo olfato, ou seja, captamos diferenças entre substâncias cujas composições variam na escala de alguns poucos nêutrons.

Outra ideia que vem ganhando popularidade é a de anestésicos alterarem o spin de elétrons no cérebro, desligando a consciência. Há também a de que núcleos de átomos de fósforo funcionem como bits cerebrais quânticos, que podem estar ligados, desligados e em todas as situações intermediárias ao mesmo tempo. Nenhuma das duas hipóteses foi provada, mas o fato de estarem sendo discutidas por gente séria e dedicada sinaliza duas coisas: a biologia quântica é um dos campos mais efervescentes de hoje em dia. E, acima de tudo, não faz mais sentido pensar o mundo por referenciais newtonianos.

Tal como se sabe no Brasil, a realidade não é para amadores. As nossas intuições sobre o seu funcionamento não traduzem adequadamente alguns de seus princípios mais fundamentais, começando pelo fato de que as coisas são feitas de ondas e a incerteza não é uma condição esporádica, mas está embebida na natureza de tudo o que é. Na marra, vamos aprendendo a lidar com isso, enquanto uma revolução tecnológica muito maior do que a da inteligência artificial anuncia-se.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL