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Álvaro Machado Dias

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como usar ciência cognitiva para ter leis melhores e barrar decretos ruins

RODNAE Productions/ Pexels
Imagem: RODNAE Productions/ Pexels

13/04/2021 04h00

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro assinou quatro decretos que flexibilizam bastante as restrições existentes para a compra de armas e munições. Senadores vinham se articulando para derrubá-los antes que se tornem lei, em 12/04/2021, mas isso não deu certo. No final, coube à ministra Rosa Weber, do STF, suspender os principais trechos dos decretos, minimizando os seus impactos imediatos. O assunto será tratado no plenário virtual do STF, em alguns dias.

Estudos mostram que a flexibilização das restrições é muito ruim para a sociedade como um todo, ainda que possa beneficiar alguns. Este é só mais um caso de ato normativo ignorando aquilo que as evidências indicam. Por quê? Por que será que tantas leis e tantos decretos são propostos na contramão das evidências?

A razão imediata é clara: interesses pessoais e de grupo. Porém, a minha tese é de que o problema não pare por aí, possuindo também um aspecto estrutural: o direito, que é a área do conhecimento de origem, ainda não incorporou as metodologias mais avançadas para a modelagem de sistemas complexos, as quais poderiam gerar evidências muito mais fortes sobre o tal interesse da sociedade, inibindo um pouco a prática, que naturalmente transcende a disciplina.

Como chegar lá? Saindo do seu isolamento epistemológico e se aproximando da ciência cognitiva, como tantos outros campos vêm fazendo para modelar os seus próprios sistemas complexos. Em resumo, a ideia é que se houvesse um movimento mais forte, dentro do direito, para integrar os especialistas necessários e modelar os impactos de diferentes alternativas legais sobre a sociedade, da maneira mais rigorosa possível (o que passa pelos chamados sistemas complexos), o absurdo de muitas canetadas executivas e propostas legislativas ficaria mais evidente. O artigo de hoje discute isso, com a máxima simplicidade que o tema permite.

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As tendências que mais influenciam a vida humana são ao mesmo tempo cíclicas e progressivas. A sociedade evolui, ao passo que os elementos do progresso entram e saem de moda.

Uma tendência que expressa bem isso é a hiperespecialização. Entre a metade do século 19 e a metade do século 20, foram criadas mais áreas especializadas do conhecimento do que no milênio precedente. E esta tradição continuou e se tornou a própria definição do que é progresso para muita gente.

Porém, em meados do século passado, um movimento de direção contrária começou a ganhar força. As áreas que abrigam a hiperespecialização começaram a implodir paredinhas, tal como se as crianças tomassem a sala de aula. Não tardou para que alguns dos alunos mais ousados percebessem que interessante mesmo seria fundir campos inteiros. Disso nasceu a ciência cognitiva, que é para mim a maior empreitada científica do século 20 e do atual.

A ciência cognitiva é o ponto de encontro da matemática, biologia e das neurociências. É também da psicologia, linguística, psiquiatria e ciência da computação. Acima disso tudo, é uma área marcada pela receptividade e interesse pelos sistemas complexos baseados em informação e inteligência. A ciência cognitiva é uma espécie de união europeia do conhecimento.

Os caminhos que ela oferece lembram viagens no tempo, ora ao futuro, ora de volta às ágoras gregas, onde a regra era desconfiar das coisas muito esquemáticas e investir sem medo nas chamadas teoria de tudo, o que hoje é conhecido como "multidisciplinaridade".

Na Europa da ciência cognitiva, vale a regra de que ser cidadão do todo não torna ninguém menos cidadão das partes. Por exemplo, do ponto de vista mais aplicado sou neurocientista, já que fiz meu PhD, pós-doutorado e livre-docência na área. Mas, no dia a dia, eu cruzo essa Europa para levar aquilo que sei para outras partes, assim como sou visitado na WeMind, que é o escritório de inovação do qual sou sócio, por gente que precisa resolver desafios tecnológicos ou conceituais pouco triviais.

Há alguns anos e mais ou menos por acaso, acabei abrindo uma nova área que é a da produção de experimentos científicos, com neurociências e modelagem computacional, para ajudar a resolver conflitos de trade-dress, concorrência desleal e afins.

A criação destes métodos aproximou-me do direito, onde reside o interesse pelos mesmos. E isso por sua vez me levou à pergunta: será que existe um lugar para o direito na revolução cognitiva?

Detalhe da estátua da Justiça - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Se a ciência cognitiva é a Europa, o direito é o Reino Unido, separado por tradições e políticas regulatórias que se encontram com o mar. O eurotúnel do direito passa sob o canal da mancha e, 50 quilômetros à frente, chega à economia. Ali do continente, atravessa-se a fronteira à biologia, já que tanto esta quanto aquela lidam com a alocação de recursos escassos e contam com um vasto repertório para tratar de oferta e demanda, isto é, mercados.

Explico. Muita gente assume que mercados são construções humanas. Está errado. Mercado é um jeito de falar da coordenação sob escassez. Os mercados humanos, culturalizados, são uma continuação dos mercados naturais. Por exemplo, o bonobo, que é o primata mais parecido conosco, gosta muito de cafuné. E também tem essa coisa de achar os bebês fofos, sobretudo as fêmeas.

Quando nasce um bebê, a mãe o põe na roda. Mas com uma condição: para brincar com seu filhote tem que fazer cafuné nela. Pois o que se observa é que quando cresce a disponibilidade de bebês no grupo, o tempo de cafuné dedicado às mães decresce. Isto ocorre de maneira quase linear, como tantas curvas da demanda que vemos por aí. É o mercado do cafuné funcionando exatamente como num livro de microeconomia.

Esta mesma conjuntura também aparta o direito do continente onde a economia estabelece laços com a biologia e a ciência cognitiva de maneira mais ampla. Veja, no planeta dos macacos só existe pagamento imediato. Ninguém topa pagar antecipado, ninguém aceita vender fiado.

Me empresta aqui seu bebê macaco, que depois eu te faço um cafuné. Não! Nem a pau! Você não vai me fazer esse cafuné. Me faz um cafuné, que depois eu te empresto meu bebê macaco. Não, nem, você não vai me emprestar esse bebê.

A ausência de contratos barra a sofisticação dos mercados naturais. Protoeconomia os macacos já têm. Regras compensatórias não, muito menos um ecossistema que garanta a sua execução.

Essa é a lógica pela qual o direito não se mistura. Em contraste com ela, o que a gente não pode esquecer é que o aparato legal está intimamente relacionado à previsão e direcionamento comportamental. Há uma psicologia implícita, assim como princípios sobre como grandes quantidades de pessoas agem, que servem - ou ao menos deveriam servir - de ponto de contato com a revolução científica que está acontecendo nas ciências cognitivas, por meio de modelagens de sistemas complexos.

Por exemplo, o papel principal das medidas repressivas é reduzir comportamentos nefastos na sociedade. Isto cria um mercado. Porém não é um mercado típico, como esse dos bonobos, mas um que parece morar atrás do espelho das trocas convencionais.

Em tese, o aumento do rigor punitivo, significando custo, gera redução na demanda, significando crimes e contravenções. Este aumento, no entanto, recai de maneira negativa sobre toda a sociedade. E traz um monte de consequências que também têm que ser incorporadas nas tomadas de decisão sobre leis e suas aplicações.

No final das contas, importa mesmo encontrar a função que maximiza a relação entre custo social da lei e redução na taxa do comportamento-alvo. Esta é uma espécie de Graal, que tem no seu caminho o desafio da identificação das diretrizes do comportamento inibitório e o da precificação social das externalidades.

Em setembro de 2020, a sexta turma do STJ determinou que juízes e desembargadores da Justiça de São Paulo não deveriam levar à prisão os condenados por tráfico privilegiado de drogas, isto é, comércio de pequenas quantidades, por réus primários, sem ligação conhecida com o crime organizado.

A ideia é que as prisões servem de base de recrutamento para as organizações criminosas e o encarceramento dessas pessoas produz um desfecho global pior para a sociedade do que a aplicação de penas alternativas. Isto é assim porque a ameaça de penas mais severas mostrou-se incapaz de inibir o tráfico de drogas, em primeiro lugar, conforme os dados mostram e os juristas de A à Z reiteram.

Num mundo ideal, esta conclusão estaria dada de antemão, por meio de mapeamentos motivacionais e antimotivacionais, baseados em evidências, combinados a análises de custo/benefício, capazes de levar todos os fatores relevantes em consideração.

Faz sentido? Para todo mundo que acha que faz, coloco uma questão: como este tipo de coisa deve ser operacionalizada? Como modelar as cestas de ofertas punitivas para que o mercado do crime e contravenção se desaqueça sem que a vida como um todo termine pior do que de início?

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Imagem: iStock

A ciência cognitiva fala em três caminhos: testes A/B, revisões sistemáticas e simulações.

Aplicados ao nosso problema, testes A/B funcionariam assim: para um grupo eu aplico uma pena, enquanto para outro aplico outra. Depois meço a reincidência nos dois grupos e acrescento aqueles custos todos que mencionei antes. No direito, isso não é possível. É antiético.

Revisões sistemáticas funcionariam assim: identifico padrões nas sentenças, por exemplo, padrões históricos, do tipo no período tal a prática foi essa; neste outro período, foi aquela. E tento correlacionar desfechos. Dá para fazer também pela comparação de países.

É certamente melhor que a anterior, mas também é limitada. O crime num determinado período pode ter baixado não por causa da lei específica em vigor, mas por causa de alguma outra coisa que não chegamos a conhecer. Do mais, o que nos importa é construir um futuro melhor. Fazer isso com base no passado é deixar de lado a oportunidade de superá-lo.

Então, finalmente, chegamos à simulação. A ideia da simulação é criar modelos sistemáticos cujos outputs sejam as consequências das leis e de suas interpretações sobre o comportamento, à luz do custo/benefício para a sociedade como um todo.

Esta é a ponte com a ciência cognitiva: toda população, humana ou não, é um sistema complexo para o qual valem algumas regras, entre as quais, a de que a quantidade de variáveis envolvidas num sistema complexo ultrapassa aquilo que o cérebro humano pode processar, de uma vez só.

Vou dar um exemplo. Legalização das drogas. De um lado temos:

  • completa proibição de todas
  • liberação do consumo de algumas
  • liberação do comércio de algumas
  • liberação da fabricação ou cultivo de algumas
  • liberação de cada uma dessas coisas para várias drogas
  • liberação de algumas dessas coisas para todas
  • liberação de todas essas coisas para todas

Do outro lado temos:

  • multa, prisão e diversas formas de penalização alternativa,
  • além dos diversos custos adjacentes.

Fiz um cálculo por cima e notei que um modelo capaz de injetar um pouco de racionalidade a este debate teria que contar com cerca de um milhão de parâmetros. Para começar. Aí eu pergunto: será que não valeria colocar este experimento no centro da discussão? Mais ainda, este tipo de coisa não deveria fazer parte do toolbox da disciplina?

Parece-me que seria um bom caminho para chegarmos a um conjunto menor de alternativas, mais fortemente associadas ao bem comum, de modo que legisladores, juristas e demais interessados no tema possam navegar com mais segurança este mar revolto.

A mesma coisa vale para impostos, incentivos fiscais, limites de velocidade.

Não há quase nada separando a lógica que rege a quantidade de pontos na carteira que cada infração de trânsito deve gerar da lógica usada nos programas de fidelidade. Em contraste, há diferenças gritantes no rigor com que princípios neuroeconômicos são aplicados num contexto e no outro. Casos como este se multiplicam.

Será que o fato de que as grandes corporações estão todas investindo em modelagens capazes de integrar diferentes fontes de informação para que seus gestores possam atuar de maneira cada vez mais estratégica sugere alguma coisa para nós, interessados na evolução das leis e das políticas públicas?

Será que não chegou o momento deste tipo de coisa integrar-se à formação daqueles que um dia estarão na linha de frente do pensamento jurídico no país? Note: a perspectiva aqui não é a de estimular a substituição gradual das decisões humanas por decisões baseadas em cálculos matemáticos que poucos conseguem compreender. Esta é uma péssima ideia, como venho falando em diversos fóruns, há anos. O princípio que tenho em mente é o da formação para o uso dos chamados sistemas de apoio decisório (DSS) - das metodologias que ajudam a rechaçar as piores ideias de maneira rigorosa, bem fundamentada, para que as pessoas possam discutir as que têm algum sentido, em profundidade. É o princípio de cortar o mato alto de maneira analítica.

Acima de tudo, o que tenho em mente é que, em se tratando do bem comum, a multidisciplinaridade traz a força.