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Álvaro Machado Dias

Apple segue tendência dos megapacotes de assinaturas no pós-pandemia

Duophenom/ Pexels
Imagem: Duophenom/ Pexels

01/10/2020 04h00

Quando as ações da Apple atingiram US$ 207, em 2018, houve um frenesi daqueles nos mercados e na mídia. Parecia que algo extraordinário havia acontecido, mas era só a notícia de que a barreira de US$ 1 tri de valuation havia sido quebrada pela primeira vez na história.

Os mais atentos notaram que se tratava de só mais uma vez em que a palavra "história" era usada como sinônimo de "a história que eu conheço".

A Companhia das Índias Orientais, que dominava o comércio de especiarias na segunda metade do século XVI, chegou a valer US$ 8 tri atualizados, enquanto seu correlato inglês, a Companhia dos Mares do Sul, que nos ajudou bastante a chegar ao buraco em que nos enfiamos, valia cerca de US$ 4 tri, em valores de hoje em dia.

Mais recentemente, em 2002, a PetroChina atingiu US$ 1,7 tri na bolsa de Xangai, mas, claro, isso não conta - afinal, a primeira vez que a China ensaiou algum tipo de preponderância sobre os mercados globais, nestes últimos 3.000 anos, foi com o TikTok, não é mesmo?

Milton Friedman falava que a função de uma empresa é satisfazer aos shareholders, isto é, dar lucro. Função social viria por osmose. Ainda que eu não conheça uma única pessoa de bom senso que acredite nisso, é inegável que a estratégia da Apple se mostrou vencedora, por mais que relativizemos a métrica e seu ineditismo.

O resultado se mostra ainda mais impressionante quando consideramos que partiu de um modelo de negócios complexo, causador de antipatias e processos civis. Num mundo em que o discurso dominante é calcado em noções como a de "empresas abertas à disrupção", "cliente criador" e "MVPs", a Apple optou por controlar toda a cadeia de relacionamentos entre hardware e software, com uma mão de ferro de fazer inveja ao partido comunista chinês.

Nestes dez anos de hegemonia da computação na nuvem, nada traduz melhor o espírito de comando e controle da empresa de Cupertino do que a relação com os criadores independentes, que precisam passar por uma bateria extenuante de aprovações até terem um aplicativo publicado na Apple Store. Isto naturalmente limita a presença de softwares mais experimentais ou de nicho ali, além de impor barreiras à concorrência, o que enriquece os advogados de ambos os lados.

Mas, afinal, por que algo tão contrário ao espírito geek tornou-se símbolo dos millenials e, ainda mais, da geração Z? Esses não seriam os caras e as caras do protagonismo digital?

Sim e não.

Ao passo que essa aspiração existe, corre em paralelo uma busca por identidade digital e simplificação que vai ao encontro de um conceito-chave para se entender os dias atuais: ecossistema funcional. A vitória da Apple é a dessa lógica sobre o protagonismo individual e sua proxy mais ativista, a cultura maker.

Ecossistema funcional é um daqueles conceitos que parecem simples, mas não são. Ao passo que o pessoal envolvido com a dimensão inventiva da tecnologia usa-o para se referir às sinergias operacionais entre o que é tangível (hardware) e o que é intangível (mídia, software), o pessoal do marketing interpreta-o como um sistema de crenças, que torna o consumidor gradativamente mais convencido da ideia de que é beneficiado por acoplamentos proprietários —por esse estado de coisas em que o fone de ouvido só entra no aparelho daquela marca.

Ou seja, para uns, ecossistema funcional seria algo derivado das relações entre coisas físicas e informação, ao passo que, para outros, seria algo que toma corpo na mente do consumidor. Para mim, as duas visões são verdadeiras e do seu encontro brotam os dois efeitos capazes de arrasar quarteirões do capitalismo contemporâneo: a retenção de clientes por inércia, usando a lógica das compras por assinatura e a capacidade de impulsionar lançamentos de maneira endógena.

Garota usa Macbook apple iphone iMac - Pexels - Pexels
Imagem: Pexels

A Apple conseguiu criar um ecossistema funcional em que a crença em estar sendo beneficiado por se vestir tecnologicamente da marca não é econômica, o que a permitiu cobrar "um prêmio" (leia-se: valores exorbitantes) pelos seus gadgets, por muito tempo. Foi a exceção que confirmou a regra: a competição entre os ecossistemas torna a ideia de barganha praticamente universal, da mesma forma como torna o modelo de assinaturas.

Assim, por exemplo, a Amazon oferta o Kindle e tem uma loja gigante de ebooks e audiobooks/podcasts (a Audible). Do ponto de vista de quem está na área de produtos, a vantagem competitiva acontece na esfera da usabilidade.

Já do ponto do marketing, ela é atingida quando os clientes passam a assumir que adquirir ebooks e podcasts da Amazon é uma oportunidade para se poupar tempo e dinheiro. Nesta lógica, a aquisição do device funciona como uma espécie de pré-requisito e não como um ato de consumo isolado. É isso o que explica o porquê do aparelho custar tão barato.

Ou seja, apesar de fazer todo o possível para facilitar a leitura do seu formato proprietário, dificultando a leitura de todo o resto e de oferecer um hardware bom e barato, a empresa põe bem menos ênfase nestas peculiaridades do que na noção um tanto mais ampla e abstrata de que seu modelo de "consumo literário e de cultura" (note bem a diferença) combina preços menores, acervos maiores e compra descomplicada.

A razão para tanto é esta que apresentei: estas dimensões reforçam umas às outras, criando o efeito ecossistema, que por sua vez evita que os clientes pulem fora ao primeiro sinal de que alguém inventou um tipo melhor de ebook ou de hardware.

Por falar em relacionamento, a empresa oferece a assinatura "prime" que dá frete grátis e, ao mesmo tempo, acesso ao streaming da marca, desconto no Audible (não disponível no Brasil), entre outros serviços.

Do ponto de vista da área de produtos, o destaque vai para as sinergias entre armazenamento, consumo de mídia e varejo, o que gera uma longa lista de potenciais benefícios, facilmente publicizáveis. Ainda assim, a ênfase é colocada na mesma combinação de pechincha, acervo e simplificação da vida digital. A decisão, mais uma vez, é puxada para o território do pensamento funcional.

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Imagem: Sagar Soneji/ Pexels

O efeito é quase mágico: de uma hora para outra, o cliente que jamais iria assinar um serviço de streaming da Amazon está fazendo um cálculo utilitário em que esse é incluído. Sem que perceba, o novo serviço adquire valor na sua mente, aumentando as chances de que o contrato com o concorrente não seja renovado pelo simples fato de não fazer parte de um pacote tão vantajoso.

É por caminhos como este que a lógica dos ecossistemas funcionais ajuda a lançar produtos. A assinatura originalmente avaliada à luz da mais abissal impessoalidade, de repente, converte-se em variável decisória numa das esferas do consumo que mais profundamente dialogam com a subjetividade: a da escolha entre acervos audiovisuais.

A Apple tornou-se o primeiro unicórnio de três chifres porque apostou mais e melhor neste modelo, quando ele ainda gerava dúvidas. A empresa acabou de dobrar a aposta com o Apple One —assinatura que reúne música, TV, videogame e armazenamento em nuvem (e notícias, lá fora); é a adoção da lógica da barganha por quem domina a lógica da qualidade percebida, confirmando aquilo que eu disse: quando os ecossistemas passam a competir fortemente entre si, preço e retenção passiva tornam-se fundamentais. O pacote deve puxar a adoção dos três primeiros serviços mencionados, os quais são, naturalmente, dependentes de hardwares da empresa.

Esta não é a primeira vez na história recente que a lógica de ecossistema é colocada em prática. Na verdade, antes do modelo especializado que consagrou a Microsoft tornar-se regra (lembrando que, por muito tempo, MS era exclusivamente focada em software), o "faz tudo" reinava soberano. A grande questão é que isso quase sempre levava ao limbo dos produtos imperfeitos, complicados e, o que é pior, desconectados dos interesses do consumidor. É isso que mudou.

As pessoas não compram Apple porque são ingênuas e ignoram que um device da empresa é uma espécie de plataforma comercial que você leva para casa para ser atormentado até pagar pela nuvem e tudo mais. Ao contrário, elas acreditam que a nuvem é um seguro essencial contra a perda de dados e acham incrível quando trocam de aparelho e as suas conversas no WhatsApp aparecem no novo. Por sinal, incluo-me neste grupo.

Do mesmo jeito, uma hora ou outra, muitos consumidores descobrem que para acessar um sem fim de aplicativos disponíveis na Google Play, o dono de um iPhone precisa fazer jail break, que é um tipo de hacking que elimina as garantias do aparelho. Isso é semelhante à Dell cancelar a garantia do seu computador porque você instalou um programa de código aberto no Windows. Ainda assim, poucos decidem pular fora, o que é sinal de que se trata de um preço pequeno a se pagar pelas vantagens, reais e supostas, que o modelo traz.

É sedutor dizer que se trata de uma jogada de marketing que meramente inverte o sentido do protecionismo, de modo a fazê-lo parecer positivo para o consumidor. Esta seria uma maneira de considerar as coisas análogas àquela que diz que as redes sociais viciam porque levam à liberação de dopamina no córtex pré-frontal, aos moldes do que se vê em "O Dilema das Redes" (Netflix). Sem dúvida, esse tipo de simplificação tem lá a sua dose de verdade, mas deixa as grandes questões em aberto.

Skyler Gisondo em cena de O Dilema das Redes (2020) - Divulgação - Divulgação
Skyler Gisondo em cena de O Dilema das Redes (2020)
Imagem: Divulgação

Ao mesmo tempo em que são a expressão de estratégias brilhantes de marketing, em sua capacidade de vender a ideia de que a tomada de três pinos do protecionismo é vantajosa para os consumidores (um absurdo total), os ecossistemas funcionais traduzem a vitória do controle de qualidade, das redes de distribuição e dos calendários de lançamentos sobre o branding enquanto atividade-fim.

A ideia de que a publicidade vende qualquer coisa simplesmente não tem espaço na estratégia de nenhuma das empresas de maior sucesso no mundo, as quais estão todas obsessivamente focadas na expansão de seus ambientes de coabitação tecnológica. Truque e verdade se fundem nos ecossistemas funcionais das GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft).

Uma evidência disso é que o produto mais conhecido da empresa mais valiosa do mundo - o e-commerce da Amazon - tem um design totalmente ultrapassado, que parece ter sido feito pelo próprio Jeff Bezos, enquanto cuidava da gestão da livraria. Cadê as 101 aulas de usabilidade nesta peça central do varejo global?

Por sinal, cadê o apelo do site do Alibaba? Por que será que não mudam isso? Será que ninguém chegou para o Jack Ma e falou "cara, seu site tem cara de podre"? Ou será que é justamente para evitar associações com certa ideia de posicionamento digital e branding que se tornou sinônimo de artifício, de fim em si mesmo? Eu vou com essa segunda hipótese.

Ao colocar a Apple na briga de preços e assim homogeneizar a competição entre os ecossistemas funcionais, o Apple One desponta como a primeira mega-tendência do consumo da fase pós-lockdown. Ele radicaliza práticas correntes e em breve deve traduzir em números o que de fato significa novo normal, um período precedido por aquisições sem precedentes (os últimos meses), que deve tornar as barreiras de entrada cada vez mais duras para quem não se inserir em um bloquinho como esses.

A conclusão disso tudo não poderia ser mais óbvia: além de terem clareza do desafio pela frente, é recomendável que cientistas sociais, empreendedores e legisladores comecem a dialogar mais seriamente sobre como preservar a competitividade, que é sinônimo de direito de ir e vir para o consumidor brasileiro e global. Sem isso, as nossas escolhas vão terminar tão livres e variadas quanto no tempo da Telesp, Telerj e outras variações geográficas da Telebrás.