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Akin Abaz

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que preciso fazer uma pausa na tecnologia para falar de meus cabelos?

Nossa relação com nossos cabelos é pura história e parte fundamental para conhecer a cultura de determinado povo - Arquivo pessoal
Nossa relação com nossos cabelos é pura história e parte fundamental para conhecer a cultura de determinado povo Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL*

30/09/2021 04h00

Fugindo um pouco de temas que são voltados para a tecnologia —que é parte importante da minha vida e algo do qual não me canso de falar—, hoje decidi escrever sobre cabelo. Sim, isso mesmo que você leu. E não, você não está na coluna errada.

Aqui, para além de ser um espaço onde falo sobre o universo tecnológico procurando desmistificar conceitos e torná-lo mais acessível para todos, é um lugar também para escrever sobre temas que perpassam a minha vida, meus gostos, mas que vejo como algo muito maior que merece atenção e vale a leitura.

Antes de mais nada, cabelo, para além da estética externa, está intimamente ligado com a autoestima, o que, no meu caso de homem trans e negro, não é uma construção fácil (autoestima não se consegue do dia para a noite) e tampouco superficial.

Além do que, para a população negra, nosso cabelo nunca foi meramente estético, muito pelo contrário.

Nossos ancestrais, antes de serem traficados e enviados às Américas, usavam (e ainda usam para aquelas tribos que não foram extintas no processo da escravidão) a forma, os adereços, os cortes e penteados para demarcar as suas origens, seu estado civil, sua etnia, religião, status social, faixa etária.

Justamente por isso, uma das primeiras coisas que eram feitas pelos capitães do mato/senhores de engenho quando os negros escravizados eram levados para as Américas, era raspar os seu cabelos ou cortar bem curto, para tentar tirar qualquer vestígio físico que pudesse trazer sinal de pertencimento étnico e identificação entre eles.

Isso mostra que a nossa relação com nossos cabelos é pura história e parte fundamental para conhecer a cultura de determinado povo.

Por tudo isso, o cabelo sempre foi uma parte do meu corpo onde dedico muito amor e cuidados e brinco com a minha criatividade. E, somado ao meu estilo, ele constrói a minha primeira imagem de expressão com o mundo, a visual.

Um dos muitos estilos de cabelo que já tive e me apeguei muito foi o de dreads. Para quem não sabe, ele é um dos marcos na busca pela valorização da estética negra através do rastafári.

O movimento religioso surgiu na Jamaica por volta dos anos 1930 e seu nome vem de Tafari Makonnen (1892 -1975), depois chamado de Ras Tafari, que foi rei da Etiópia (na época a única nação independente da África).

Os rastafári acreditam que a coroação de Makonnen, futuramente chamado de Haile Selassie, era o cumprimento de uma profecia, que ele era o messias que os libertaria da pobreza do Caribe para a África, terra dos seus antepassados, seu centro espiritual.

O cantor Bob Marley foi um dos seguidores mundialmente conhecidos e ajudou a difundir os ideais do rastafarianismo para outras nações.

Para além da religiosidade, o movimento rastafári se pautou muito na estética, através das roupas coloridas nas cores da bandeira etíope, e os cabelos com dreadlocks, que se formavam na maior parte naturalmente devido ao fato dos rastas não poderem cortar ou escovar os cabelos, pregando o estado mais natural possível do ser humano no seu estilo de se vestir, comer e se mostrar para o mundo.

Apesar de não ser adepto da religião, o surgimento e o uso dos dreads são mais uma prova de que a relação de nós, negros, com os nossos cabelos sempre vem atrelada a algo cultural, histórico e/ou social. Eles exaltam todas as nossas características físicas atreladas ao pertencimento étnico e identitário como mais uma forma de afirmação da nossa beleza e humanidade, que ainda hoje tentam retirar de nós a todo momento.

Akin Abaz cabelo imagem 2 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Visual do meu cabelo crespo descolorido
Imagem: Arquivo pessoal

Mudanças capilares e rotinas de cuidados

Além dos dreads, que por sinal fiz em mim mesmo, já assumi o meu crespo, usei tranças, muitas cores como rosa e o "loiro pivete", termo que ficou conhecido por um tom de loiro extremamente descolorido e muito utilizado por jovens negros nas periferias de todo o país.

Por isso, sempre procurei manter uma rotina de cuidados com o meu cabelo, para que ele aguente passar por todas as mudanças capilares de uma forma saudável. E isso é fundamental para a saúde dos fios e do couro cabeludo.

Com isso, faço toda uma rotina de hidratação semanal procurando observar quais as necessidades do meu cabelo naquele dia, se ele passou por algum processo químico com descolorante e pintura, como está seu aspecto e textura.

Inclusive, nessa caminhada de conhecer as minhas madeixas e observar as suas nuances, criei a minha receita secreta para descoloração do cabelo crespo.

Além de aplicar no meu, recebi pedidos para fazer também em alguns colaboradores da InfoPreta. Muito chique, hein?! Quem sabe um dia eu não compartilho com os seguilovers que me acompanham lá no Instagram?

Tudo isso para dizer e fazer refletir que o meu cabelo e de todos os meus irmãos e irmãs negros finalmente se tornaram símbolo de orgulho para nós após tantas décadas ouvindo comentários preconceituosos e racistas sobre a nossa aparência.

Estamos recuperando todo o amor-próprio que nos foi roubado e reconhecendo os descentes de reis e rainhas que há em cada um de nós. Nossa beleza é potência e inspiração!

* Colaborou Gabriela Bispo, jornalista e redatora de conteúdo da InfoPreta