'Adolescência' traz impotência de famílias frente a big techs sem regulação

A série "Adolescência", recém-lançada pela Netflix, vem ensejando discussões sobre o papel das famílias e escolas no monitoramento das atividades online dos adolescentes, as consequências da construção e da perpetuação das masculinidades tóxicas, da violência misógina e do bullying no ambiente digital. São temas que suscitam, como saída, a construção de soluções multidisciplinares em curto, médio e longo prazos, no sentido de evitar a ampliação do adoecimento psíquico e promover o restabelecimento do diálogo, principalmente entre adolescentes e suas famílias.
O que parece ainda não estar sendo abordado a contento nessa equação difícil, contudo, é a urgentíssima necessidade de que se debata —e se enfrente— a maneira como os algoritmos das plataformas mais utilizadas por adolescentes podem amplificar conteúdos prejudiciais, lucrando com este tipo de engajamento e afetando negativamente o desenvolvimento dos adolescentes e suas interações.
O design manipulativo das redes sociais e das plataformas de vídeos, ao explorar a hipervulnerabilidade do cérebro de pré-adolescentes, tende a ampliar a assimetria de poder entre as famílias e as empresas. O que efetivamente podem fazer mães e pais, diante de tamanho poder exercido pela dominação algorítmica —que amplia o eco dos discursos mais violentos e restringe o acesso a conteúdos mais diversos a partir de seus sistemas de perfilamento?
Não há dúvidas de que os elementos simbólicos da cultura entre pares na adolescência seguem importantes no desenvolvimento gradual da autonomia e na formação das identidades. É preciso considerar que esta é uma fase em que enfrentamentos são inerentes ao seu processo de desenvolvimento, o que suscita inclusive reflexões importantes quanto à sua privacidade.
Porém, o nível de invisibilidade dos modos de funcionamento dos algoritmos que customizam as experiências e conectam pessoas e conteúdos é avassalador. Não se trata apenas da invisibilidade das experiências dos adolescentes em relação aos familiares, mas da opacidade sobre como estas plataformas ajudam a moldar a experiência individual a partir da cultura digital, inclusive de crianças com idades muito inferiores aos 13 anos que consta como idade mínimo para acesso.
Estudos recentes apontam que as redes sociais estão repletas de discursos machistas e misóginos, que influenciam negativamente os adolescentes, podendo levar a problemas como ansiedade, baixa autoestima e comportamentos agressivos. E os algoritmos dessas plataformas podem, inadvertidamente, expor adolescentes a conteúdos que reforçam ciclos de violência e processos de radicalização. O acesso frequente a esses conteúdos pode dessensibilizar os jovens e normalizar situações extremas.
A exposição aos conteúdos e conversas em comunidades tóxicas pode ser muitas vezes maior do que o todo o tempo que estes adolescentes passam em interação com os adultos de referência e cuidadores.
Essa percepção de incômodo já é compartilhada por boa parte da população brasileira: segundo pesquisa Datafolha em parceria com o Instituto Alana, 86% das pessoas entrevistadas afirmam que os conteúdos mais acessados por crianças e adolescentes nas redes sociais não são adequados para sua idade, e de acordo com a pesquisa TIC Kids Online 2024, 57% dos usuários com idade entre 11 e 17 anos admitiram sentir algum tipo de desconforto com o uso excessivo de Internet.
Diante desse cenário aterrador, é fundamental enfrentar, entre outros (já que se trata de um problema de raízes múltiplas), o debate sobre a regulação das plataformas digitais —afastando-o da contaminação ideológica que afetou o Brasil nos últimos anos quanto a esse tema. A proteção online de crianças e adolescentes, garantindo a elas seu direito a estar no ambiente digital, já vem sendo feita por legislações das principais democracias do mundo.
No Brasil, o PL 2628, aprovado pelo Senado no final do ano passado e que deve ser votado pela Câmara dos Deputados em 2025, estabelece a responsabilidade de empresas que oferecem produtos e serviços digitais voltados para crianças e adolescentes, como Tik Tok, X, Meta e Google, de reforçar as proteções contra conteúdos inadequados para cada faixa etária e coibir práticas de exploração comercial.
Essas obrigações estão em conformidade com o Comentário Geral 25 da ONU, que trata dos direitos infantojuvenis no ambiente digital. Além disso, garante a remoção prioritária e imediata de conteúdos que violem esses direitos, como casos de assédio moral ou violência sexual.
O PL demonstra um compromisso nítido em exigir que essas plataformas identifiquem e gerenciem seus riscos. Elas passam a ter o dever de disponibilizar ferramentas acessíveis para supervisão parental, além de promover mais transparência e fortalecer o papel das famílias diante de práticas como o uso de inteligência artificial em recomendações de conteúdo e o perfilamento comportamental dos usuários. Essa medida se torna ainda mais relevante diante do fato de que pouco mais de um terço dos pais consegue controlar com quem seus filhos interagem na Internet, conforme a pesquisa Datafolha/Alana.
Vale, ainda, mencionar o PL 2338/2023, da regulação de inteligência artificial no Brasil. A proposta, também em debate no Congresso Nacional, apresenta mecanismos essenciais para compreender e reagir aos impactos das IAs de recomendação de conteúdos.
Em paralelo, a implementação de políticas que promovam a educação digital midiática, a educação para a paz e os direitos humanos pode ser uma ferramenta eficaz para enfrentar a violência digital, proporcionando aos jovens, famílias e educadores a oportunidade de desenvolver habilidades críticas para reconhecer e combater conteúdos prejudiciais - assim como igualmente importante é abrir espaços para imaginarmos novos produtos e serviços que de fato considerem o melhor interesse de crianças e adolescentes e estimulem a provisão de ambientes que permitam uma experiência digital positiva apropriada a cada idade.
"Adolescência" não apenas retrata os desafios enfrentados pelos jovens e suas famílias na era digital, mas também serve como um chamado urgente à ação imediata para que famílias, escolas, empresas e autoridades trabalhem juntas na criação de um ambiente online mais seguro e saudável. Uma Internet em que a construção de identidades não seja moldada por algoritmos que promovem a violência em nome do lucro, mas que faça valer o preceito constitucional que estabelece que crianças e adolescentes devem ser prioridade absoluta.
* Maria Goés de Mello é coordenadora de Digital do Instituto Alana e Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília.
** Rodrigo Nejm é coordenador de Digital do Instituto Alana, Doutor em Psicologia e Especialista em Educação Digital.
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