Topo

OPINIÃO

Como a Amazônia influenciou estudo revolucionário sobre DNA de primatas

Cuxiú-de-nariz-branco (Chiropotes albinasus), natural da Amazônia - Gustavo Canale
Cuxiú-de-nariz-branco (Chiropotes albinasus), natural da Amazônia Imagem: Gustavo Canale

Lucas Ferrante

Especial para Tilt, do Amazonas*

02/06/2023 04h00

O Laboratório Genômico na Amazônia se destaca em pesquisas de ponta que ajudam a desvendar mistérios da evolução dos primatas. Vieram de lá dois artigos publicados nesta sexta-feira (2) na edição especial sobre o genoma dessa classe de animais a que pertencemos da revista "Science", um dos maiores e mais prestigiados periódicos científicos do mundo.

Com a participação de dois professores do Departamento de Genética do Instituto de Ciências Biológicas da UFAM (Universidade Federal do Amazonas)**, os pesquisadores Dra. Izeni Farias e Dr. Tomas Hrbek, ambos do Legal (Laboratório de Evolução e Genética Animal da UFAM), os artigos utilizaram análises de comparação genômica entre os diferentes primatas conhecidos no mundo, incluindo nós, os seres humanos.

Este foi um esforço possível somente pela colaboração de vários pesquisadores pertencentes a várias instituições ao redor do ao qual se somaram os professores Hrbek e Farias.

Para a coleta do material genético dos primatas amazônicos, foram realizadas pelo menos seis expedições em todo o bioma amazônico, onde também foram amostrados outros grupos de vertebrados como aves, peixes, anfíbios, répteis e outros mamíferos. A finalidade das expedições foi principalmente conhecer mais a diversidade de espécies da Amazônia, tendo foco naquelas ainda não catalogadas pela ciência, as chamadas novas espécies. Dentro destas amostragens, um dos grupos que mais gerou informações foram os primatas, cujos dados fizeram parte dos estudos publicados na revista Science.

izeni - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Pesquisadora e professora dra. Izeni Farias, do Departamento de Genética do Instituto de Ciências Biológicas da UFAM (Universidade Federal do Amazonas)
Imagem: Arquivo Pessoal

O primeiro dos estudos, coordenado pelo pesquisador Lukas Kuderna, do Instituto de Biologia Evolutiva, de Barcelona (na Espanha), realizou o sequenciamento completo do genoma de 233 espécies de primatas, representando todos os principais grupos distribuídos pelo mundo. O estudo mostrou que existe uma ampla diversidade genética dentro das espécies e entre as famílias de primatas em diferentes regiões geográficas, que se deu tanto por fatores climáticos como pela sociabilidade dos animais.

Além disso, o mesmo estudo mostrou que o risco de extinção destes primatas não parece estar associado a nenhum destes fatores. A diversidade genética dos primatas neotropicais (os do continente americano), principalmente os amazônicos, está abaixo da média da diversidade de todos os restantes, mas ainda assim é maior do que a da população humana. Um dos resultados mais interessantes é a observação de que a acumulação das variações genéticas em diferentes espécies, estão relacionadas com o tamanho das populações e de seus tempos geracionais (intervalo para que indivíduo nasça, cresça, se desenvolva e gere descendentes férteis).

O estudo também mostrou que as taxas de mutação diferem entre as diferentes espécies, também potencialmente influenciadas pelos tamanhos populacionais. Por último, o estudo contrariou a crença antiga. Uma extensa recorrência de mutações que acreditava-se ocorrer apenas em humanos também está presente em vários primatas.

No segundo estudo, coordenado por Hong Gao, do Laboratório Illumina de Inteligência Artificial em Foster City na California (Estados Unidos), os pesquisadores também mapearam o genoma de 233 espécies de primatas para comparar se há mudanças em relação àquelas observadas em humanos.

tomas - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Pesquisador e professor Dr. Tomas Hrbek, do Departamento de Genética do Instituto de Ciências Biológicas da UFAM (Universidade Federal do Amazonas)
Imagem: Arquivo Pessoal

Os resultados demonstraram que muito do que antes a ciência acreditava serem mutações deletérias são, na verdade, comuns nos primatas, incluindo a nossa própria espécie. Isso é particularmente importante para a ciência, pois mostra que cerca de 94% das mutações que ocorrem em primatas são compartilhadas e benignas, o que fornece maior compreensão sobre doenças genéticas, como o câncer. Ou seja, seria como se estivéssemos aprendendo mais sobre o nosso genoma e nossas mutações com nossos parentes primatas.

Especificamente, Gao e seus colaboradores, catalogaram todas as variantes observadas nos genes das populações humanas e nos 809 genomas das 233 espécies de primatas estudadas. Eles analisaram os efeitos das diferenças nos mesmos genes entre os humanos e os demais primatas, identificando discrepâncias em somente 39 genes. A maioria delas está associada com doenças hereditárias humanas, mas permanecem em nosso genoma por conferir proteção contra patógenos.

Treinando IA para captar mutações

Outro achado importante do estudo é que o gene responsável pela manutenção das pontas dos cromossomos (telômeros), o que permite a longa vida dos humanos, evoluiu de forma diferente em nossa espécie em relação aos demais primatas. Como parte do trabalho, os pesquisadores ainda usaram a classificação clínica das variantes gênicas dos humanos caracterizadas pela mudança tridimensional das proteínas causadas por essas variantes para treinar um modelo de inteligência artificial. Com base neste modelo, os pesquisadores caracterizaram os efeitos dos 4.3 milhões de mutações conhecidas nos humanos, mas clinicamente não caracterizadas. Essa caracterização resultou na em identificação de vários genes, inclusive genes causadores da deficiência intelectual e desordens de desenvolvimento neural.

Além disso, o modelo da inteligência artificial consegue prever os efeitos clínicos de qualquer mutação observada ou ainda não observada na população humana. Esses achados têm inúmeras implicações clínicas com grande potencial para uma medicina genômica personalizada em um futuro muito próximo. Com base nestes achados, a Dra. Izeni Farias enfatiza a importância de estudos das ciências básicas, como as do artigo de Kuderna e seus colaboradores, por estes terem desdobramentos importantes nos achados das ciências mais aplicadas como as apresentadas nos artigos de Gao e seus colaboradores.

**Outros pesquisadores de varias instituições no Brasil também contribuiram para o estudo, como pesquisadores da UFPA, INPA, IDSM, UFRO, UFMT entre outras.

*Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestre e doutor em biologia (ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).