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OPINIÃO

MP que altera Marco Civil deu o que falar, mas e o direitos das crianças?

Amina Filkins/ Pexels
Imagem: Amina Filkins/ Pexels

Maria Mello e João Francisco Coelho*

Especial para Tilt

19/09/2021 04h00

A Medida Provisória 1068/21, que visava alterar o Marco Civil da Internet (norma considerada a Constituição da Internet no Brasil e que foi fruto de um processo intenso de debates multissetoriais) para estabelecer a limitação da prática de moderação e restrição do alcance de conteúdos e de contas por provedores de redes sociais com mais de 10 milhões de inscritos, foi devolvida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, no último dia 14, após ter sido sido amplamente criticada por autoridades, parlamentares, partidos, pesquisadores e entidades de classe desde sua edição, em 6 de setembro.

A devolução da medida provisória foi acompanhada pela suspensão de sua eficácia pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), que destacou a insegurança jurídica instaurada pela norma e os problemas formais relativos à sua edição.

Nas seis ações diretas de inconstitucionalidade propostas ao STF relativamente à iniciativa do Executivo, destacou-se, ainda, que o texto violava a liberdade de expressão (uma vez que tornava o ambiente digital menos propício para o debate democrático), a livre iniciativa e o princípio da proibição do retrocesso social, além de não cumprir com os requisitos de relevância e urgência necessários à edição de uma medida provisória.

Sublinhou-se, também, o fato de que não se sabia qual autoridade administrativa acompanharia a aplicação da norma, caso ela fosse validada pelo Congresso Nacional.

A derrocada da iniciativa do presidente da República constitui evidente vitória do campo democrático, já que o texto, conforme amplamente destacado, tinha como característica mais facilmente identificável o salvo-conduto à disseminação de conteúdo desinformativo no ambiente digital.

Contudo, é necessário que se tenha claro que a devolução da medida provisória não torna obsoleto, de forma alguma, o debate acerca das possibilidades de moderação de conteúdo pelas plataformas digitais, mesmo porque o tema segue sendo objeto de discussão no âmbito do Poder Legislativo.

Isso posto, é importante chamar atenção para um ponto pouco discutido quando da validade da MP: os riscos da aplicação de norma que limite excessivamente as possibilidades de moderação das plataformas digitais para as crianças e adolescentes que vivem no Brasil, pessoas em peculiar estágio de desenvolvimento e que, assim como em suas casas e escolas, precisam de proteção também no ambiente digital.

Segundo dados da Unicef de 2017, 1/3 dos usuários da internet no mundo são crianças, e no Brasil, em 2019, 89% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos foram consideradas usuárias de internet, conforme dados da pesquisa TicKids Online 2019.

A medida provisória elencava, dentre as hipóteses de "justas causas" que autorizariam a remoção de conteúdo das redes sem necessidade de decisão judicial, casos de nudez, pedofilia e conteúdo em desacordo com o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), o que poderia despertar a falsa impressão de que ela resguardaria de maneira adequada os direitos das crianças e adolescentes.

Ocorre, porém, que além de não incluir práticas recorrentes nas redes como bullying, stalking e assédio, o texto, ao estabelecer severas sanções às plataformas digitais no caso de moderação inadequada de conteúdo, tornava mais complexa e onerosa a utilização de tecnologias e práticas de gestão de rede que permitem reconhecer imagens de abuso sexual ainda antes de serem postadas, bem como detectar de antemão sinais de possíveis abusos e mapear redes de atuação de abusadores.

Além disso, a mera menção genérica ao ECA gera pouquíssimos efeitos positivos na prática, já que uma formulação tão vaga quanto a que constava na medida provisória torna difícil vislumbrar a forma como a hipótese seria aplicada concretamente.

Ademais, disposições como a que constava no parágrafo único do artigo 8º do texto, que vedava aos provedores de redes sociais a adoção de "critérios de moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdo que impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa", podem fazer com que as plataformas se desobriguem do que vem sendo anunciado em termos de diminuição de alcance para conteúdos demasiadamente comerciais, ampliando a possibilidade de marketing predatório contra crianças e adolescentes.

Vale lembrar, aqui, que a publicidade dirigida ao público infantil é prática considerada abusiva e ilegal em nosso país.

Por fim, é preciso que se pondere acerca do tipo de ambiente digital fomentado por iniciativas como a do Poder Executivo no tocante aos direitos de crianças e adolescentes.

Redes sociais nas quais "fake news" circulem livremente, em que seja liberada a venda de armamentos e em que publicações que veiculem discursos de ódio não sejam derrubadas em nome de uma suposta vedação à censura ideológica vão no sentido oposto de uma internet adequada ao uso e que contribua para o desenvolvimento desses indivíduos, os quais, em última análise, poderão ser privados dos benefícios vinculados a um ambiente digital democrático e saudável, além de terem o seu direito de acesso à informação seriamente ameaçado.

Para que se alcance efetivamente esse ambiente on-line adequado ao público infanto-juvenil, é evidente a urgência de discussões regulatórias que garantam mais transparência e parâmetros para as práticas adotadas pelas plataformas digitais, inclusive no que se refere à utilização de dados pessoais de crianças e adolescentes em seu ambiente, bem como o seu compromisso com a concepção de produtos que incorporem os direitos das crianças em seu design.

Porém, é certo que essas discussões precisarão ser construídas de forma multissetorial, com tempo para o debate e ampla participação da sociedade, e não por meio da edição de medida provisória escrita às pressas e flagrantemente permeada por intenções antidemocráticas.

Da recente iniciativa do Executivo, ficam as reflexões para que propostas regulatórias futuras não venham a minar os direitos das crianças e adolescentes, ainda que à primeira vista pareçam incorporar a sua proteção.

* Maria Mello é coordenadora do programa Criança e Consumo do Instituto Alana; João Francisco de Aguiar Coelho é advogado do programa Criança e Consumo do Instituto Alana