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OPINIÃO

Empresas que exploram dados estão tirando a liberdade de nossas crianças

nadia_bormotova/iStockphoto
Imagem: nadia_bormotova/iStockphoto

Isabella Henriques e Pedro Hartung*

Especial para Tilt

18/10/2020 04h00

Empresas de tecnologia coletam 72 milhões de pontos de dados sobre uma criança até ela chegar aos 13 anos

Uma coalizão internacional que uniu especialistas e organizações, como a 5Rights Foundation, Global Action Plan, CCFC e o Instituto Alana, encaminharam recentemente uma carta ao Google, Facebook, Apple, Amazon e Microsoft exigindo que essas gigantes de tecnologia parem de coletar dados de crianças e adolescentes para segmentação publicitária. E que parem com a exploração comercial infantil no ambiente digital, adotando, em contrapartida, medidas para garantir uma experiência digital segura para crianças e adolescentes.

O documento é de extrema importância, pois crianças, adolescentes e suas famílias, no mundo inteiro, têm enfrentado inúmeros desafios a respeito das novas tecnologias da informação e comunicação, a internet, os produtos e serviços e as redes sociais. Problemas com:

  1. segurança digital,
  2. rastros digitais,
  3. economia da atenção,
  4. design persuasivo,
  5. manipulação comportamental,
  6. direcionamento de publicidade comercial,
  7. coleta e tratamento indiscriminados de dados pessoais


As consequências disso são as várias formas de exploração infantil, inclusive a comercial.

Nossa sociedade contemporânea é pautada pela vigilância, em que há uma verdadeira hiper-digitalização e datificação da vida das pessoas —na medida em que todos os nossos comportamentos e informações são registrados e utilizados para finalidades comerciais.

Assim, fica cada vez mais difícil, para crianças e adolescentes, gozarem de suas infâncias e adolescências com a liberdade desejável —inclusive para cometer erros e experimentar fracassos sem a pressão pública—, e com seus direitos assegurados no ambiente digital.

Eles passaram a ter seus dados pessoais, que dizem respeito à sua própria personalidade (como idade, hábitos, gostos, saúde, religião, orientação sexual etc.), massivamente coletados, utilizados e comercializados, inclusive para terceiros. E, o que é pior, também para fins de manipulação comportamental e de direcionamento, muito mais persuasivo, de anúncios publicitários segmentados.

De acordo com um relatório de pesquisa da PwC, estima-se que o investimento global em publicidade digital para crianças será de US$ 1,7 bilhões em 2021, o que equivalerá a 37% dos gastos em publicidade infantil.

A mesma pesquisa aponta, ainda, que mais de 40% do aumento de usuários de internet no mundo, em 2018, referiu-se a crianças, as quais já representam 1/3 dos usuários na internet, conforme o relatório da Unicef "The State of World's Children 2017" (A Situação Mundial da Infância 2017: Crianças em um Mundo Digital).

A carta endereçada às empresas de tecnologia menciona também que empresas de ad-tech coletam 72 milhões de pontos de dados sobre uma criança, até ela chegar aos 13 anos de idade.

Isto significa que essas empresas conhecem 72 milhões de informações específicas, de dados mais triviais aos mais psicologicamente profundos, sobre uma só criança. Ressalta que isso demonstra a dimensão do desrespeito às leis de proteção de dados pessoais, vigentes em diversos países, e o alto nível de monitoramento imposto sobre as crianças, que são rastreadas e perfiladas para que possam receber conteúdo publicitário ao ponto de que sua atenção seja monetizada de forma mais efetiva.

Vale lembrar, que as crianças, em especial até 12 anos, não compreendem o caráter persuasivo da publicidade, em virtude de estarem vivenciando um período peculiar de desenvolvimento físico, cognitivo e social. Não conseguem, sequer, identificar os conteúdos publicitários como mensagens comerciais que são, especialmente, no ambiente digital, nem, tampouco, resistir a essas estratégias mercadológicas.

Por conta dessa hipervulnerabilidade, no Brasil, é ilegal pelo Código de Defesa do Consumidor, o direcionamento de publicidade a crianças com menos de 12 anos de idade, independentemente do tipo de produto ou serviço anunciado ou do meio utilizado para tanto. Isso significa que, também na internet, é proibido direcionar mensagens comerciais a pessoas de até 12 anos.

Mesmo plataformas autoclassificadas para usuários adultos estão submetidas a essa norma quando a sua audiência for infantil. Por consequência, é também ilegal a coleta e o tratamento de dados pessoais de crianças de até 12 anos para fins de segmentação publicitária.

No que diz respeito aos adolescentes, de 12 a 18 anos, a análise da abusividade deve ser feita caso a caso, como prevê a Resolução 163 do Conanda.

Contudo, na hipótese de publicidade comportamental, realizada com base na coleta e tratamento de dados pessoais, a abusividade deve ser presumida, diante da vulnerabilidade do adolescente e do fato de que referida prática não atende ao seu melhor interesse (art. 14, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).

A utilização de dados pessoais de crianças e adolescentes para fins de publicidade comportamental deve ser, com efeito, totalmente repudiada —como já recomendou a Academia Americana de Pediatria, no seu recente policy statement "Digital Advertising to Children" (Publicidade digital para crianças).

Essa prática de exploração comercial de crianças e adolescentes é baseada em modelos de negócios que não consideram, verdadeiramente, o seu melhor interesse e a prioridade absoluta dos seus direitos. São, ao revés, consequência da notória assimetria de poder existente nas relações entre as empresas, as famílias e seus filhos e filhas.

De fato, é desigual e injusto o aproveitamento da hipervulnerabilidade das crianças e dos adolescentes para fins de exploração comercial, especialmente, em tempos de pandemia, quando estão cada vez mais online, seja para estudar, brincar, socializar com parentes e amigos ou para outras atividades.

Crianças e adolescentes possuem o direito de usufruir um ambiente digital seguro, saudável, livre do assédio comercial e que lhes proporcione experiências valorosas em termos de aprendizado, socialização, brincadeiras, criatividade e novas descobertas.

A garantia do seu melhor interesse no uso das novas TICs (tecnologias da informação e comunicação) e na internet, no Brasil, é responsabilidade constitucional compartilhada por todos nós, famílias, sociedade —empresas— e Estado, e para todas as múltiplas infâncias brasileiras.

(*) Isabella Henriques é advogada e diretora executiva do Instituto Alana; Pedro Hartung é advogado e coordenador do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana.