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OPINIÃO

Spider-Man: Miles Morales não tem medo de abordar tensões sociais

Miles Morales é negro, morador do Harlem, e protagonista do novo Spider-Man - Reprodução/START
Miles Morales é negro, morador do Harlem, e protagonista do novo Spider-Man
Imagem: Reprodução/START

João Varella

Colaboração para o START

29/11/2020 04h00

Houve alguns ruídos na comunicação da Sony na transição de geração de consoles. Um deles ocorreu com Marvel's Spider-Man: Miles Morales, o novo jogo do Homem-Aranha. Ao fundamental, portanto: é um game de PlayStation 4 e 5 que funciona por conta própria —um jogo "standalone".

Trata-se de continuação direta de Marvel's Spider-Man, de 2018. Segue a mesma base em termos de gameplay e cenário. É também uma produção menor, com metade da duração. A Insomniac segue o molde de Uncharted: The Lost Legacy, um meio do caminho entre expansão e grande produção completa.

Com conotações políticas e sociais, o enredo do game se passa algum tempo depois do final do último Spider-man. O adolescente negro de ascendência latina que dá nome ao jogo tem poderes parecidos com os de Peter Parker.

O velho aranha (que aparece estranhamente rejuvenescido e com novo rosto, como se tivesse mudado o ator) ensina Miles, o personagem controlado pelo jogador, a ser herói.

Inexperiente, Miles quer mostrar serviço. Os nova-iorquinos preferem o Homem-Aranha original e falam isso na lata do esforçado novato. Miles encara na boa. É um adolescente sangue bão demais. Cool feito um Obama.

Spider-Man Miles Morales - Divulgação/Sony - Divulgação/Sony
Imagem: Divulgação/Sony

Na vida pessoal, o garoto e sua família lidam com uma mudança de endereço. Saem do distrito do Brooklyn para morar em Manhattan, área mais famosa e turística de Nova York. Mais especificamente, passam a morar no bairro do Harlem.

A região é conhecida na vida real por sua efervescência cultural —a cena de jazz e rap tem ligação histórica com o local— e por abraçar a população marginalizada. O centro do jogo é essa periferia.

A ambientação inspirou uma trilha sonora instigante. Ao começar as travessias pela cidade, há um efeito sonoro que parece vir de pick-ups de DJs. É a introdução de uma canção grandiloquente e suingada.

Inexperiente, Miles quer mostrar serviço. Os nova-iorquinos preferem o Homem-Aranha original e falam isso na lata do esforçado novato. Miles encara na boa. É um adolescente sangue bão demais

Spider-Man Miles Morales - Divulgação/Sony - Divulgação/Sony
A efervescência cultural do Harlem é bem representada no game
Imagem: Divulgação/Sony

Voltar ao primeiro Spider depois de Miles evidencia o senso comum sonoro do jogo de dois anos atrás. Alguém da Insomniac deve ter pesquisado no Google "trilha épica de filme de herói" e tacou no game.

Não é só na música. O jogo mais recente dá, em linhas gerais, alguns passos adiante em comparação ao anterior. Acaba por fornecer uma lente de aumento em defeitos no game de 2018 que passaram despercebidos.

O impacto de originalidade, no entanto, é do jogo mais antigo, e isso vai ser difícil de tirar dele.

Ardilosos e nefastos

Spider-Man Miles Morales - Reprodução/START - Reprodução/START
Imagem: Reprodução/START

Depois de um tutorial —com comandos familiares aos que conhecem o título de 2018 —, Peter diz que vai viajar durante um tempo. Agora cabe a Miles cuidar da cidade. Justamente nesse período, vilões surgem com planos sinistros, para a surpresa de zero pessoas.

O fundamento mecânico é inspirado —alguns diriam copiado— da série Batman Arkham. Bate com o botão quadrado, ao piscar o alerta de sentido de aranha é a hora de apertar bola para desviar. Triângulo usa a teia para se aproximar dos inimigos ou puxar armas, R1 faz disparos que deixam os inimigos grudados.

O que há de diferente são as habilidades extras de Miles. Além dos poderes do Homem-Aranha original, ele dispara choques bioelétrico —chamado no game de venom; nos quadrinhos de ferrão ou rajadas de veneno.

A sensação é de jogar o jogo de 2018 com algum cheat code ou hack. A ação continua atraente, mas o game não calibrou sua dificuldade em torno do novo personagem

Spider-Man Miles Morales - Divulgação/Sony - Divulgação/Sony
Imagem: Divulgação/Sony

Em termos de jogabilidade, é um tipo de ataque especial que pode assumir variadas formas, de um soco direto a um pulo que atordoa os inimigos ao redor. Acionar o poder gasta uma barra, que se enche com ataques a inimigos ou manobras durante os deslocamentos pela cidade.

Com isso, as batalhas ficam mais fáceis. E não para por aí. Miles também pode ficar invisível, o que deixa a ação furtiva um mamão com açúcar. Dada inteligência artificial capenga dos inimigos, dá para desaparecer tranquilamente diante dos olhos deles e escapar.

Isso faz de Miles desproporcionalmente forte. A sensação é de jogar o jogo de 2018 com algum cheat code ou hack. A ação continua atraente, mas o game não calibrou sua dificuldade em torno do novo personagem.

Detalhes tão pequenos

Spider-Man Miles Morales - Reprodução/START - Reprodução/START
Imagem: Reprodução/START

Ajustes pontuais à parte, é essencialmente o game anterior, do sistema de progressão ao cenário. A cidade é a mesma, porém com neve e decoração natalina.

A sensação de que só mudou a embalagem também está nas tarefas espalhadas pelo mundo aberto —agora o mapa já vem destravado, com todas as informações desde o começo.

No Spider 2018 havia dezenas de mochilas escondidas pela cidade. Agora são baús da organização criminosa Underground. Sai a missão de encontrar felinos da Gata Negra para dar lugar à gravação de sons específicos da cidade.

Algumas características valeram ser conservadas. O novo game volta deliciar os jogadores com a sensação de balançar em alta velocidade entre prédios e está ainda mais belo que o anterior. Para isso, basta segurar R2 e eventualmente apertar outros botões para incrementar as manobras. Cenas de hyper-parkour para deixar Ezio, Bayek e toda a galera do Assassin's Creed com dor de cotovelo.

Spider-Man Miles Morales - Reprodução/START - Reprodução/START
Imagem: Reprodução/START

A versão de PlayStation 5, claro, deixa tudo ainda mais exuberante e as viagens rápidas não têm tempo de carregamento. Agora o metrô virou estação de teletransporte digna de Star Trek.

Faltou, porém, uma participação maior do controle DualSense, novidade do console de nova geração da Sony —será que essa vai se transformar em uma exigência no PS5? Fato é que poderia ser o velho Dualshock 4 sem grandes problemas.

As telas de loading do PS4 trazem simpáticas cenas de Miles no metrô, enquanto jogadores do novo console precisam habilitá-las para ver Miles fazendo pirueta entre os passageiros, por exemplo.

E aqui chegamos a um ponto em que precisamos ir mais a fundo no enredo de Miles Morales. Não creio que comprometa a experiência, mas o alerta de spoiler está dado, sigamos.

Faltou, porém, uma participação maior do controle DualSense, novidade do console de nova geração da Sony —será que essa vai se transformar em uma exigência no PS5?

Cara de Marvel

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Dois Aranhas, cara-a-cara
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Um problema do Spider 2018 era que seu conteúdo se estendia além do que sua jogabilidade proporcionava, forçando a barra em alguns momentos. As tarefas relacionadas às estações de pesquisa, envolvendo poluição, pressão hidráulica, entre outras zeladorias urbanas, pediam ao jogador uma boa colher de tolerância.

Miles Morales vai direto ao ponto. Não há o pout-porri de malvados famosos dos quadrinhos, adotado no game anterior. Dos vilões clássicos, só o Rino aparece, o que dá uma chance de a história surpreender e oxigenar o universo, resgatando personagens menos óbvios em reinterpretações criativas. São quase 60 anos de conteúdo nos quadrinhos, o universo do herói criado por Stan Lee e Steve Ditko, há muito mais do que Shocker, Escorpião, Octopus etc.

O cacoete de jogo de herói de juntar um bando de antagonistas na narrativa foi superado, mas não o clima de telenovela de superpoderosos típico das produções Marvel. A melhor amiga e o tio de Miles também são supervilões, ó, que coincidência. Os dilemas de ser do bem ou do mal fazem parte do pacote.

Papo reto

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Imagem: Divulgação/Sony

Miles Morales dá passos importantes em questões sociais, uma postura adotada pela Sony de The Last of Us part II, embora a empresa negue.

Há apenas dois personagens brancos relevantes —Parker e o antagonista Simon Krieger. A história vai além da representatividade. Há um conjunto de missões que liberam um mural enorme dizendo "black lives matter" (vidas pretas importam). Uma mensagem relevante, ainda mais depois de o mundo assistir João Alberto Silveira Freitas, negro, 40 anos, ser assassinado por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre.

Uma cena em especial, após o colapso de uma ponte, parece reverberar os tempos bicudos que vivemos. O herói é ameaçado por armas das forças de segurança. A população ao redor revida com seus smartphones, gravando a cena.

O enredo aproveita o Harlem para tocar em problemas de uma região desfavorecida, como especulação imobiliária e descaso do poder público. A ênfase no local enfatiza o lema "amigo da vizinhança", mote histórico do cabeça de teia.

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Imagem: Divulgação/Sony

Dentro do tom de revista da Marvel, o texto explicita o óbvio e tenta se ater a essa camada. Evita questões mais espinhosas, como a vida política de Rio Morales, a mãe de Miles, que concorre a uma cadeira na Câmara Municipal.

Um ponto que merecia entrar para os diálogos abertos do jogo: não há interação do protagonista com a polícia.

O enredo aproveita o Harlem para tocar em problemas de uma região desfavorecida, como especulação imobiliária e descaso do poder público. A ênfase no local enfatiza o lema 'amigo da vizinhança', mote histórico do cabeça de teia

Disparado o maior constrangimento do Spider-Man 2018, Peter Parker brincava de ser policial em diálogos bajuladores. Se era ruim há dois anos, hoje definitivamente não cai bem.

Mesmo vindo do mesmo alicerce, Miles tem brilho próprio. A Insomniac fez ajustes. Em vez de ficar de papo com policiais, Miles conta com amigos para apontar onde estão as principais missões. Mesmo ele sendo filho de um policial, os guardas mal têm espaço na obra. Uma sutileza que talvez não seja captada nesta era em que a cultura é forçada a gritar.

Spider-Man Miles Morales - Reprodução/START - Reprodução/START
Os créditos finais dedicam o jogo ao ator Chadwick Boseman, o Pantera Negra do MCU, morto neste ano vítima de um câncer
Imagem: Reprodução/START
Spider-Man Miles Morales - Divulgação/Sony - Divulgação/Sony
Imagem: Divulgação/Sony

Lançamento: 12/11/2020
Plataforma: PlayStation 4 e PlayStation 5
Preço Sugerido: R$ 249,50
Classificação Indicativa: 12 anos (violência)
Desenvolvimento: Insomniac Games
Publicação: Sony Interactive Entertainment
Jogue também: Batman Arkham City, Marvel's Spider-Man, Marvel's Avengers

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