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OPINIÃO

Resgatado por fãs, Shenmue III é o "elo perdido" da geração Dreamcast

Makson Lima

Colaboração para o START

05/12/2019 04h00

Quando pensamos em "Shenmue", muita coisa vem à mente: a produção mais cara de sua época, o último grande fracasso comercial da Sega, uma das experiências mais revolucionárias dos videogames. Além, é claro, de muito treino de artes marciais, passeio de empilhadeiras e a clássica corrida de tartarugas.

Depois de 18 anos, a série que nasceu no Dreamcast, e havia morrido por lá, foi resgatada em uma grande campanha de financiamento coletivo. Para quem acompanhou toda a jornada, parece inacreditável que o jogo finalmente tenha se tornado realidade. "Shenmue III" vem com gloriosas legendas em português brasileiro (pela primeira vez na série), dispensa qualquer modismo de game design das últimas décadas e ajuda Ryo Hazuki a dar mais um passo em sua busca por vingança.

Capítulo 6: Vila Bailu

Acompanhar a história de "Shenmue" não é simples: por isso mesmo fizemos um resumo, e você também encontra um vídeo de recapitulação dos eventos passados logo no menu inicial. Ele sintetiza bem os últimos e atribulados meses da vida de Ryo Hazuki, o estudante de artes marciais de Yokozuka, uma pequena cidade periférica ao sul de Tóquio, cuja vida mudou radicalmente em 29 de novembro de 1986.

É bom estar com tudo isso fresco na memória, porque nessa saga tão mundana e ordinária, tão única e distinta, cada detalhe tem grande valor. Basta abrir o inventário de Ryo para se deparar com itens como a folha branca do Dojo Hazuki, as fotos com Nozomi ou com Lishao Tao e os monges do Templo Man Mo, para chorar de verdade - os jogos originais propunham carregar arquivos salvos de um jogo a outro, e essa terceira parte cumpre o prometido, na medida do possível.

Shenmue Vila - Reprodução - Reprodução
Uma harmoniosa e pitoresca manhã nessa vila em Hong Kong
Imagem: Reprodução

"Shenmue II", de 2001, fechou em sobressalto, como num delírio entre Ryo e Shenhua, a jovem da Vila Bailu que ele conhecera havia pouco tempo. Numa caverna, um fenômeno místico ocorre. O Espelho da Fênix, assim como a Espada das Sete Estrelas, acionam um mecanismo, mas só parcialmente, pois o Espelho do Dragão, a terceira peça do quebra-cabeças, fora roubado por Lan Di, um dos líderes do grupo mafioso Chi You Men e assassino de Iwao Hazuki. Além disso, Shenhua relembra e recita o poema milenar do povoado de Hong Kong, passado de geração a geração:

"De uma terra distante do leste,
do outro lado do mar,
ele aparecerá.
Ele não conhece a força oculta dentro si.
A força que o destruiria.
A força que seus desejos"

Shenmue árvore - Reprodução - Reprodução
A árvore Shenmue em frente à casa de Shenhua
Imagem: Reprodução

O objetivo inicial da dupla é a busca pelo pai de Shenhua. O artesão, que costumava trabalhar diariamente na caverna de Bailu, e responsável por talhar em pedra enormes representações de ambos os Espelhos, está desaparecido, assim como outros colegas de ofício na vila. Há bandidos por ali, gente estranha aos moradores do pacífico lugar, onde todos se conhecem e se respeitam.

Minutos depois que a dupla sai da caverna, já é possível constatar o quanto "Shenmue III" encontra-se perdido no tempo, e de forma absolutamente proposital: é como se estivéssemos num videogame de 20 anos atrás, parcialmente atualizado no visual e efeitos sonoros, mas preso a maneirismos e fundamentos criados por ele mesmo. E até poderia soar datado em pleno 2019/2010, mas não.

Elo perdido em Hong Kong

Interação é parte fundamental do jogo. Abrir gavetas, falar com pessoas, prestar atenção em cada detalhe.

Com seu fiel caderninho de anotações (devidamente atualizado, com diferentes categorias, algumas ilustrações e até uma parte dedicada a contatos!), Ryo investiga o sumiço dos artesãos, conhecendo melhor cada habitante do lugar. As crianças treinam Tai Chi Chen na praça central, a senhora prepara o almoço, pescadores aguardam a próxima mordida. Não há GPS ou facilitações mais contemporâneas e típicas dos videogames, ou seja: é preciso conhecer o lugar, saber onde está cada loja, seus caminhos e atalhos, e isso vem naturalmente, pois explorar o mundo de jogo sempre foi um dos pontos altos da franquia.

Shenmue memórias - Reprodução - Reprodução
Memórias dos ensinamentos de Iwao
Imagem: Reprodução

A rotina começa com o despertador disparando às 7 da manhã, e os afazeres devidamente discutidos com Shenhua. Para cada momento do jogo, todo diálogo possível com cada um de seus personagens no mundo muda, oferecendo uma infinidade de possibilidades para serem exploradas, mas de forma cadenciada ao objetivo de cada ponto específico.

Em raros momentos, há a possibilidade de selecionar entre diferentes opções de respostas, alterando sutilmente o desenrolar do diálogo. Já os objetivos secundários, por exemplo, são apontados com a mudança do ícone de diálogo, e concluí-los desdobra eventos numa ideia fora das mecânicas do jogo em si - a criança quer uma bola, mas seus pais não podem pagar e ela não tem nada a oferecer em troca. Ou tem?

O ritmo é lento, e faz sentido nas primeiras horas: Ryo precisa conhecer o lugar, as pessoas, e sua amizade com Shenhua ajuda nesse sentido. Há um vínculo de confiança atuando entre eles, mesmo que um tanto velado. "Shenmue III" vai se abrindo conforme a trama progride, apostando na ideia de que liberdade é algo superestimado nos games - Yu Suzuki e sua talentosa equipe, que conta com vários veteranos da franquia, sabem disso, e as possibilidades surgem aos poucos.

Shenmue Saturn - Reprodução - Reprodução
Um achado profético no templo de Niaowu
Imagem: Reprodução

Em 1999, "Shenmue" foi um primor técnico. Não havia nada parecido em termos visuais. Os detalhes nos dedos, feições, movimentação labial, cabelos, a profundidade de cenários, as mudanças de tempo, a unidade de cada NPC: tratava-se de um marco do audiovisual. Cada local era especificamente criado, com sua própria e marcante trilha sonora, algo que é mantido à risca aqui.

20 anos depois, "Shenmue III" é inteligente ao fugir do fotorrealismo, repleto de personagens com fisionomias exageradas e até cômicas. Só derrapa em alguns momentos em que o excesso de pop-ups pode comprometer a imersão. A paisagem natural é belíssima, assim como o nível de detalhes únicos em cada edificação, mas há engasgos de performance no PS4 Pro, onde o jogo foi avaliado.

Outro ponto um tanto discutível: Ryo precisa comer, algo novo para a franquia. Mas isso não significa que algum tipo de elemento de sobrevivência tenha sido assimilado, muito pelo contrário. Tal necessidade ramifica a exploração, forçando-nos a entender as possibilidades de jogo. Alcaçuz, raiz de ginseng, gengibre e muitas outras ervas podem ser coletadas e vendidas. Além do pachinko, jogos de dados, sorte e da famosíssima corrida de tartarugas da Vida Bailu, é uma excelente forma de conseguir um dinheirinho extra, pois será preciso para manter Ryo bem alimentado.

O vilão está à espreita? Acho que sim, mas como abrir mão de uma partidinha no fliperama mais próximo?

Shenmue Salvo - Reprodução - Reprodução
Já está salvo!
Imagem: Reprodução

Alhos negros, maçãs e berinjelas fazem parte de suas necessidades diárias, pois vida e estamina são uma coisa só. Os sistemas de evolução e RPG, presentes nos dois primeiros jogos, aqui encontram-se de forma um tanto mais explícita. Você saberá quando se tornar mestre de determinada técnica marcial, assim como dos níveis de Kung Fu, resistência e potência de golpes de Ryo. Frequentar o salão marcial, perto da casa de Shenhua, é sempre uma excelente pedida, pois há níveis de dificuldade para você escolher dessa vez, e "Shenmue III" não é necessariamente fácil, nem mesmo em sua forma mais moderada. Caso duvide, experimente lutar contra os monges de duan mais altos. O Tigre Dourado é um adversário formidável.

Filosofia das artes marciais

Há um enorme respeito pelas artes marciais em "Shenmue". O treino constante, a dedicação e empenho são recompensados, e isso vai muito além de conseguir pontos de experiência, expandir árvores de habilidade ou chegar até o nível máximo possível. A franquia sempre fez questão de seguir numa contramão, e "Shenmue III" se mantém irredutível. Por isso vai uma listinha de ensinamentos dos quatro Wude:

GON - Todo dia, sem negligenciar, treine;
DAN - Seja corajoso e mantenha a calma para tomar as decisões certas;
JIE - Julgue a si mesmo sem presunção e não demonstre seus movimentos sem pensar;
YI - Aja sem hesitação, faça o que é certo.

Shenmue Ren - Reprodução - Reprodução
Confiar ou não em Ren?
Imagem: Reprodução

Praticar a posição do cavalo, o soco de uma polegada e o passo do galo em bonecos de madeira são ótimas maneiras de se manter afiado, assim como treinar amistosamente com os monges. É a melhor maneira de dominar o reformulado sistema de combate de "Shenmue III". Veteranos de "Virtua Fighter" podem estranhar as mudanças, como a total ausência do botão de agarrão, mas há muitos níveis de complexidade atuando. Esquiva se faz com dois toques rápidos do analógico, e defender no momento correto pode mudar completamente o rumo do combate. Como facilitador, há um botão de atalho para acionar golpes mais complexos, mas é legal entendê-los no treino e sentir sua progressão.

Aprender novas técnicas com pergaminhos caríssimos ou, de forma ainda mais especial, aprendendo com mestres de artes marciais com quem Ryo cruza jornada afora é algo que oferece inúmeras possibilidades ao combate, que tem papel crucial em toda a franquia. Afinal, estamos falando de "Virtua Fighter RPG".

Dito isso, as sequências de QTE (os "quick time events", difundidos e usados à exaustão em videogames) foram mantidos e parecem, dessa vez, fora de lugar, oferecendo pouca imersão nas cenas de ação. São sequências por vezes grosseiras, de tentativa e erro, sem a ramificação de possibilidade oferecida, por vezes, em "Shenmue II".

E a história continua

"Shenmue III" oferece respostas, desanuvia inquietações de décadas, mas está longe de ser um desfecho, como foi dito por seu criador já no lançamento do financiamento coletivo do jogo. São muitos os momentos marcantes, são várias as surpresas, e o épico continua acompanhado do absolutamente banal: o vilão está à espreita? Acho que sim, mas como abrir mão de uma partidinha no fliperama mais próximo?

É curioso perceber, cada vez mais e mais, como todas as partes em "Shenmue III" conversam com seus fundamentos de artes marciais, e a evolução de Ryo Hazuki, antes franzino, sisudo, introspectivo e individualista, é perceptível na simples conversa com uma criança, ou no respeito ao conhecimento dos idosos. Mais que dar continuidade à franquia, "Shenmue III" resgata o nome de um dos mais importantes e influentes desenvolvedores de videogame da história da mídia, Yu Suzuki, e só isso já tornaria essa nova iteração muitíssimo válida. Os fãs que tornaram essa realidade possível devem concordar comigo.

Shenmue capa - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Lançamento: 19/11/2019
Plataforma: PC (Epic Store), PlayStation 4
Preço sugerido: R$ 118,99 (PC), R$ 249,90 (PS4)
Classificação indicativa: 12 anos (Violência, Drogas Lícitas)
Desenvolvimento: Ys Net
Publicação: Deep Silver

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