'Fala sério', Júlia

Filha de Bussunda dirige episódio de série sobre o pai: 'O politicamente incorreto era humor de esquerda'

Laysa Zanetti Colaboração para Splash, em São Paulo Zô Guimarães/UOL

Quando Bussunda morreu, sua filha Júlia tinha apenas 12 anos. Mas foi só quando estava começando o curso de cinema na PUC-RJ que decidiu procurar terapia: "Tenho ansiedade generalizada e, quando entrei na faculdade, estava tendo ataques quase todos os dias. Então minha mãe falou: eu não posso te ajudar em tudo, para algumas coisas nós precisamos de um profissional".

Hoje, aos 27 anos, Júlia Besserman segue na terapia, é mestre em roteiro pela Academia de Artes de São Francisco, Califórnia, e professora de storytelling do Colégio São Vicente de Paulo, no Rio. Já tentou escrever dramas, mas prefere as comédias. Com a sua estreia na direção, no quarto episódio da série "Meu Amigo Bussunda", no Globoplay desde o dia 17 de junho, vieram holofotes que ela não esperava:

Estou um pouco confusa com a situação toda, porque eu tinha 200 seguidores no Instagram e agora tenho 800. Estou tentando entender por que as pessoas acham que eu tenho algo de interessante para postar.

Para o documentário, Júlia precisou encarar memórias do pai que estavam bem guardadas, a discussão do politicamente correto no humor e a separação entre o Bussunda que ela conhecia e aquele que o Brasil enxergava.

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De dentista a cineasta

Nascida e criada na zona sul do Rio de Janeiro, Júlia escreve pilotos de séries nas horas vagas e ouve muitos podcasts de crimes verídicos —"li em algum lugar que a minha geração ouve podcast porque a gente envia muitas mensagens e fica com vontade de ouvir alguém falando"— mas cogitou cursar odontologia ou biologia antes de decidir pelas artes:

Quando eu era muito pequena, queria ser dentista. Meu pai reclamava com a dentista, que é da família até hoje, e dizia: 'Não acredito! O que você fez para ela querer ser dentista?' E aí, eu mudei totalmente. Quando ele morreu, queria fazer biologia.

Anos mais tarde, percebeu que sua vocação estava em outro lugar:

"Eu estava vendo o trailer de algum Harry Potter, e falei que, como eles estavam crescendo, a música havia ficado mais sombria, mas era o mesmo tema. Nessa época, eu estava na oitava série. Minha mãe disse que eu era muito perceptiva com esses detalhes e perguntou se eu já havia pensado em fazer cinema. Sentei com isso por um tempo e falei que, realmente, gostava de ficar vendo filme."

E é por causa de sua especialização em roteiro que, quando surgiu o convite para participar de "Meu Amigo Bussunda", ela jamais imaginava assumir a direção:

Quando o Claudio Manoel me convidou, eu achei que seria como roteirista consultora. Escrevi uma ideia, e ele falou: 'Vamos colocar esse como o quarto episódio e mandar para o Globoplay'. Eu tomei um susto, mas foi uma ótima experiência.

Apesar disso, afirma que ainda gosta mais de escrever que de dirigir. "O Claudio, o Micael [Langer] e toda a equipe [das produtoras Kromaki e Emoções Baratas] me ajudaram bastante. Se fosse eu sozinha, iria enlouquecer."

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O humor politicamente incorreto

No episódio que dirige, Júlia conversa com vários humoristas para refletir sobre o lugar da comédia e o legado de seu pai. Ela se declara politicamente alinhada com a esquerda, defende pautas progressistas, condena um mundo binário e reforça a afirmação feita por Fábio Porchat no documentário: não é justo tirar o humor do contexto.

Hoje, o politicamente incorreto é considerado humor de direita nesse sistema binário. Na época, era uma coisa de esquerda, porque era sobre acabar com o conservadorismo e fazer piada com tudo e com todos. Acho que parte do humor do meu pai tem que ficar lá mesmo, mas podemos trazer aquela irreverência para a atualidade.

Apesar do choque que sentiu ao revirar as memórias do "Casseta & Planeta" —ela ficou anos sem consumir qualquer humor brasileiro após o trauma da morte de Bussunda—, Júlia conseguiu se entender com certas piadas feitas pelo grupo na época e que, hoje, seriam "canceladas".

"Hoje, estou em paz. Era uma discussão que eu precisava ter, porque eu sempre pensava nele como pai. Eu tinha que perguntar: quem era o humorista? Quem era o profissional? Precisava unir as duas figuras na minha cabeça."

Tendo isso esclarecido —o Bussunda pai era menos irreverente, mais tímido e preocupado de a filha não se formar na faculdade como ele, que foi jubilado da UFRJ—, Júlia enxerga algo muito atual na ousadia do comediante:

Uma coisa que ele fazia em casa era usar o humor como ferramenta de empoderamento, para lutar contra o medo. Se eu tinha medo de fantasma, ele fazia piada com fantasma. Se eu tinha medo do escuro, ele fazia piada com o escuro. Deveríamos usar o humor para isso.

Júlia Besserman

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Aprendendo a viver o luto

E ela continua: "Por exemplo, eu zoaria o governo, o que ele fazia naquela época! Me sinto tão fora de controle, nessa pandemia e com o governo que temos, que usaria a irreverência dele para me trazer de volta um sentido de: está tudo péssimo, mas eu posso rir e mostrar que existe uma zoação a ser feita".

Revirando o baú de memórias de Bussunda e do "Casseta & Planeta", Júlia não chegou a descobrir algo que não soubesse sobre seu pai, mas relembrou histórias perdidas e fez novas ligações entre a morte dele e a pessoa que ela se tornou:

Pela figura que ele era, minha família e os amigos dele sempre contaram histórias, porque o meu pai também se metia em cada uma... [risos]. Mas fiz algumas novas conexões. Se ele não tivesse morrido, eu provavelmente seria rata de praia hoje, porque eu surfava, ia toda semana. Agora, vou duas vezes ao ano, perdi meu parceiro.

Lançado exatamente 15 anos após a morte de Bussunda durante a Copa do Mundo da Alemanha, o documentário ainda foi importante para que Júlia conseguisse se entender melhor com o próprio luto.

Foi o momento de ver a dor de outras pessoas pela morte do meu pai e entender que ainda pode doer em mim. Na época que ele morreu, cismei que precisava superar rápido. Eu pensava: cresci na zona sul do Rio, sou branca, tem muita gente que perde pai. Eu ficava nessa de achar que não tinha direito de sentir isso, porque a minha vida foi boa.

Diante das emoções dos amigos e colegas do pai —e com uma ajudinha da terapia—, ela conseguiu ter outra visão.

"Esse foi o momento de falar: não, espera, eu tenho direito. Foi doloroso. E eu posso falar que foi doloroso e continuar sentindo. A cada ano eu vou repensando e aceitando mais que ainda dói e que provavelmente vai doer. Fica mais fácil, mas ainda há dias em que dói muito, e outros dias em que dói menos... dias em que não dói nada".

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Uma filosofia de vida

O zen bussundismo é a filosofia que guiou Bussunda em sua vida. Criada pelo próprio humorista, trata-se de um conjunto de lemas que prezam pela leveza, pela tranquilidade e pelo bom-senso.

Os quatro mandamentos do 'zen bussundismo'

  • 1

    Tenha um nome a lazer

  • 2

    Ler é 'duca'

  • 3

    Hei de vencer mesmo sendo legal

  • 4

    Saiba conjugar o verbo 'me fodi'

'Hei de vencer mesmo sendo legal'

Adepta à filosofia do zen bussundismo ("primeiramente, porque eu gostaria de ser uma pessoa mais zen, em segundo lugar porque meus pais realmente me criaram com essas normas"), Júlia considera essencial o terceiro mandamento, que sua mãe e seu pai criaram juntos, e tenta seguí-lo em todos os aspectos de sua vida.

A gente tem que ter mais compaixão e empatia pelas pessoas e não achar que o sucesso é conseguir, numa malandragem, alguma coisa que te dê vantagem. Aqui em casa, ser legal já é uma vitória.

Agora, Júlia sonha com o momento de poder voltar a dar aulas presenciais. E se aparecerem outros projetos? "A gente encaixa".

Estou dando aulas remotamente, e é meio triste porque meus alunos às vezes têm vergonha de ligar a câmera, então parece que estou dando aula para a Alice no País das Maravilhas, o para o Pikachu, coisas assim.

"Mas eu fico escrevendo piloto de série, então, se alguém quiser me contratar, estamos aí [risos]! Só realmente não quero abrir mão de dar aula, gosto muito dos meus aluninhos, e o projeto que eu tenho agora é continuar lecionando."

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