'Chefuxo'

Kaire Jorge é diretor-executivo, empresário do rap, produtor e filho de Eliane Dias e Mano Brown

Guilherme Lucio da Rocha de Splash, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

Com 25 anos, Kaire Jorge é diretor-executivo da produtora Boogie Naipe, dono de selo musical que abriga grandes revelações do trap brasileiro, além de ator e modelo. Por essa sequência, a responsabilidade já seria grande.

Mas, na certidão de nascimento, ele carrega o nome da mãe, Eliane Dias, e do pai Pedro Paulo Soares, o Mano Brown.

Kaire encara a "pressão" como uma bênção, não um fardo. Sabe aquele camisa 11 do seu time que foi destaque nas categorias de base e precisa conduzir o elenco rumo ao título? O estádio pode estar lotado que o atleta gosta. Ele nasceu para isso.

Falar que sou filho do Mano Brown não me incomoda. Sei que meu pai é uma referência, é algo que faz parte. Mas eu estou trilhando meu caminho. Eu sou o Kaire Jorge, diretor-executivo, empresário, produtor e filho do Mano Brown. Hoje a lista é essa [risos].

E é essa lista que justifica o título desta reportagem. Entre os jovens, essa formalidade de chamar "chefe" já não é comum. Algo mais carinhoso, mas que ainda deixa claro quem manda, é o termo "chefuxo". Assim que Kaire é visto.

A paixão pela música, claro, ele aprendeu dentro de casa. Com o pai, integrante do Racionais MCs e uma das maiores referências da música nacional, desde muito pequeno ele esteve próximo do universo do hip-hop —embora ser MC nunca fosse uma opção.

Hoje, Kaire comanda a Labbel Records, selo que trabalha com os artistas Danzo e Yunk Vino, destaques da cena trap nacional. Inspirado em nomes como Sean Combs (ex-Puffy Daddy e atual Diddy) e Jay-Z, artistas/empresários do rap americano, ele sonha em ver seu trabalho ajudando a quebrar paradigmas para a cultura que ele acompanha desde que nasceu.

Eu tenho Jay-Z e Sean Combs como exemplo. Eles estão uns 20 anos a frente da gente, até por reconhecimento financeiro da indústria da música. Uma vez, passei na frente do estádio do Brooklyn Nets e tinha uma foto imensa do Jay-Z na frente [o rapper é dono do time da NBA]. Imagino, sim, isso acontecendo no Brasil.

Kaire Jorge

Visão empresarial

Aos 5 anos, Kaire participou de uma brincadeira com um primo, que era MC, e cantou numa faixa apenas para se divertir. Essa foi sua única aventura como cantor.

Já seu lado empresário "nasceu" com uma marca de roupas, em meados de 2015. A Müe foi uma criação dele com outros três amigos, mas acabou não vingando. A lição que tirou do episódio foi o tino para novas oportunidades.

Na música, seu primeiro trabalho foi como produtor dos Racionais MCs, ajudando na logística em cima e fora dos palcos. No começo dos anos 2010, com a criação da Boogie Naipe, que passou a cuidar da carreira do grupo e dos trabalhos solo de Mano Brown, Kaire passou a atuar como diretor-executivo da empresa, abaixo da sua mãe, a CEO.

No início de 2020, ele decidiu abrir um novo braço para a produtora, o selo Labbel Records.

Trabalhamos com diversos artistas, como o próprio Racionais, que tem uma marca consolidada. Mas senti necessidade de fazer mais coisas, que não caberiam no nicho da Boogie. Se eu trouxesse a estética do trap para a produtora, misturaria muito as coisas. A Labbel nasceu daí.

Tanto na Boogie Naipe quanto na Labbel, Kaire faz o trabalho "de escritório", olhando contratos, cuidando da logística, prospectando parcerias. Porém, a área que ele mais curte é estar ao lado dos artistas na criação do produto mais importante: a música.

Mas nada de dar pitaco. Cada um no seu lugar.

Tenho um ouvido bom, estou em contato o dia inteiro com música. Sei quando tem algo fora de ordem, mas não falo: 'pô, aqui é nota tal'. Não sou disso. Os meninos que trabalham comigo são muito criativos, há muita troca de ideias. Queria ter essa vivência de produzir, de passar pelo processo de criação musical.

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Negro tipo 'A'

A imagem do rap no Brasil é muito forjada nos anos 1990, época dominada por homens com cara de mau. Isso vem mudando e hoje esse estereótipo é mais diluído no imaginário.

Durante 1h de entrevista, não teve assunto que fizesse Kaire fechar a cara —o semblante fechado ficou mesmo só para as fotos. Pelo contrário, ele esteve quase sempre com um sorriso no rosto, com respostas firmes e tranquilas, de e chinelo e bermuda, à vontade na sede da Boogie Naipe, na zona sul de São Paulo. É difícil imaginar uma reunião de negócios em que Kaire não convença o interlocutor sobre qualquer assunto.

Porém, o principal paradigma nesse ecossistema é o de uma inversão na pirâmide do hip-hop. Além da pouca idade, Kaire é um negro ocupando um cargo de liderança numa indústria onde boa parte da mão de obra é negra, mas donos de gravadoras e selos, em sua maioria, não.

O artista também quer se identificar, quer trocar uma ideia e ser entendido. A chance de o Yunk Vino compartilhar uma história e eu entender aquilo a fundo é grande. Também sou um moleque da periferia, entendo as problemáticas sociais envolvidas no processo.

Kaire Jorge

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Paixões além da música

Para além da música, Kaire tem outros dois amores: os carros e o futebol.

Ambas nasceram em casa. Segundo ele, o amor pelos motores foi herdado da mãe. Ele, desde criança, tinha no banco do carro um lugar seguro.

"Minha mãe conta várias histórias de quando eu era e criança e passeava com ela de carro e curtia muito, dormia mesmo com o barulho do motor, o chacoalho da rua", conta ele, que hoje tem quatro automóveis na garagem.

Já a paixão pelo futebol —e pelo Santos Futebol Clube — veio do pai. Diferentemente de Mano Brown, Kaire acompanhou uma época de ouro do Santos, com o título brasileiro de 2002 com Robinho e companhia, e o título da Libertadores de 2011, com Neymar de protagonista.

No entanto, a partida que mais o marcou foi um Santos e Juventus, no Pacaembu, em 2006.

Lembro que estava eu, meu pai e minha irmã [Domenica]. Caiu o mundo nesse dia. Mas choveu muito mesmo, não foi brincadeira. E nós ficamos lá até o final. É daqueles jogos que você não esquece, que te marcam como torcedor.

A partida terminou com vitória do time da Vila por 2 a 1.

Na música, o amor vai se renovando de filho para pai. Se você vê Mano Brown se aproximando de artistas jovens do trap, do funk e do rap, muito disso é por culpa de Kaire. Sempre atento às novidades, ele faz questão de inteirar o pai sobre as novas tendências.

Sempre conversamos sobre música e apresento o que estou ouvindo, o que tem de novo. Lembro que quando estávamos nos EUA, finalizando o 'Cores e Valores', do Racionais, o BK' kançou o álbum 'Castelos e Ruínas'. Fiquei impressionado, achei muito foda e apresentei para o meu pai, que gostou também.

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O grupo do zap da família

Com mais de 100 mil seguidores no Instagram, Kaire é bem ativo na rede, compartilhando sua rotina de escritório e estúdio. Ele diz não ter Twitter "para não se irritar", o que não impede uma visita ou outra à rede social do pássaro azul.

Volta e meia, além dos pedidos de "audição" de novos artistas que tentam um espaço no seu novo selo, os seguidores clamam para que ele compartilhe mais sobre o dia a dia com a família, mesmo que ele more sozinho há anos.

Não tem como. Até acho legal o que rola com o Will Smith, que compartilha bastante coisa, mas aqui é diferente. Acho que o pessoal confunde muito o pessoal com o público, e seria uma bagunça. E meus pais são reservados, não tem essa de chegar na casa deles e sacar o telefone, já gravando Stories.

O trabalho de Kaire envolve uma dinâmica, digamos, incomum: ele precisa opinar na carreira do pai e é subordinado à mãe. Isso sem falar nas parcerias com a irmã, a atriz Domenica Dias.

"É engraçado, mas levo muito de boa. Todo mundo sabe separar as coisas."

Com agendas bem apertadas e conflitantes, as reuniões de família não são comuns. O jeito é trocar ideia pelo WhatsApp. Entre as discussões, estão temas sociais e políticos. Mas, diferentemente de boa parte dos brasileiros, é tudo no amor em família.

A gente fala sobre tudo, conversamos também sobre política. Mas é um papo bem tranquilo, todos temos um pensamento próximo. Agora mesmo na pandemia: meu pai achou que era a hora de ir para rua, e minha mãe discordava. Mas recentemente, isso se inverteu. Isso foi motivo de conversa no grupo.

Kaire Jorge

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