O funk é a estética do caos.

O resumo é do articulador nacional do Movimento Funk, Bruno Ramos, 32.

A narrativa do Estado é de que estamos mortos e o funk, os fluxos, os bailes nos fazem sentir vivos.

É como completa a poeta Ari Ex, 22, frequentadora de bailes funk na capital paulista, de forma a sintetizar o que um dos principais movimentos populares do país representa.

Com mais de 30 anos de história —o primeiro disco do gênero, "Funk Brasil", do DJ Marlboro, comemorou três décadas, em 2019—, o funk já faz parte do calendário oficial, sendo celebrado todo 7 de julho. Além disso, o movimento é reconhecido também como manifestação cultural desde 2018 pela Câmara dos Deputados.

O maior canal brasileiro no YouTube é o do diretor e produtor musical Kondzilla, com mais de 63 milhões de inscritos. Já no Spotify, o consumo do gênero cresce 51% ao ano desde 2014. Atualmente, o ritmo aparece em segundo lugar nas buscas e downloads, ficando atrás apenas do sertanejo.

E o funk não é apenas consumido domesticamente. Domingo, no Grammy, Cardi B e Megan Thee Stallion (consagrada a artista revelação do ano) levaram um remix do DJ Pedro Sampaio ao palco da premiação. E, antes disso, o funk já havia ganhado o mundo.

No entanto, aqui no Brasil, o gênero ainda é alvo de criminalização por grande parte da população, que acha normal a prisão de MCs e DJs de funk por associação ao tráfico e tenta justificar a violência policial em chacinas como a que ocorreu no bairro paulistano de Paraisópolis, em 2019. Além disso, o funk segue sendo rechaçado por representantes de outro gêneros —caso da polêmica recente polêmica envolvendo o produtor Rick Bonadio.

Mas o funk é, sim, cultura.

O funk dialoga muito com a juventude, porque ela se sente representada pelas letras e é de sensibilidade da população entender que o movimento funk é o maior movimento político, cultural, que conversa com essa parte da população que é desassistida pelo Estado.

Bruno Ramos, Conselheiro Nacional da Juventude e integrante do coletivo Favela no Poder

O primeiro disco de funk brasileiro

Em 1989 foi lançado a antologia "Funk Brasil", do DJ carioca Marlboro, considerado o primeiro disco da história do funk carioca.

UOL TAB

Hoje tem fluxo

Hoje tem fluxo no Damasceno, estica e puxa?

É assim que a informação sobre os bailes costuma chegar via WhatsApp, avisando o local onde ocorrerá o evento daquela noite nas diferentes quebradas em São Paulo. "Fluxo" é o encontro de jovens nas ruas, onde eles ouvem música, criam e falam gírias, dançam, chamam para um bololô (ou, para os mais velhos, paqueram), esbanjam sensualidade e sexualidade, bebem, fumam e ocupam, com seus corpos, seus próprios espaços.

Condensar a complexidade de tudo que ocorre em um baile funk (ou fluxo) é uma tarefa difícil: essa cultura está em constante transformação.

Conforme explica o músico e antropólogo Meno Del Picchia, que pesquisa o tema, o funk é uma forma de expressão, mas, para que ela ocorra, há uma espécie de culto ao paredão de som, que toca as músicas nas festas.

"Para fazer a festa na rua é fundamental ter um equipamento de som potente, isso não é novidade, não é invenção dos funkeiros. Desde os sound systems de reggae até as aparelhagens sonoras do Pará, para citar dois exemplos, podemos observar a centralidade dos sistemas de som nas práticas musicais da juventude urbana", diz.

"A gente mora onde tem o baile, então, não é que precisamos sair de casa para ir no baile. Ele se espalha por todo o bairro", conta MLK de Mel, 22, que mora no Jardim Elisa Maria, zona norte de São Paulo.

Os bailes nas favelas paulistanas reúnem, semanalmente, até 15 mil pessoas. Estas pessoas movimentam não apenas o quadril ao som dos mais recentes sucessos, mas também a economia local e a cena cultural do país.

Se juntarmos todas as pessoas do movimento atualmente, temos quase seis vezes a população de um país do tamanho do Uruguai, que é de 3,5 milhões de pessoas. Estar como articulador nacional desta cultura e pensar políticas públicas é um desafio de chefe de estado, para criar alternativas para as periferias. Não há, no país, nada que consiga dialogar tanto com a nossa juventude quanto o funk. O poder público não consegue, a escola não consegue, mas o movimento é uma ferramenta de articulação, educação e diálogo.

Bruno Ramos

marlene bergamo

Ó o pesado!

Antes da pandemia, Dona Marieta Odete de Fátima, 52, tinha a renda mensal garantida com a venda de bebidas nos bailes de funk na zona norte da capital paulista. Mas nem sempre foi assim. Ela conta que se rendeu ao movimento depois de perceber que não conseguiria dormir com o sistema de som, então, resolveu tirar proveito.

Eu passava noites em claro, revoltada, porque o som era muito incômodo para mim. Juntei isso ao meu dom de vendedora da juventude e comecei a vender bebidas. Vivo da renda que consigo ter das noites em que vou para o baile com meu carrinho. Eu já até gosto das músicas que tocam.

Aos 27 anos, Leonardo de Freitas Cruz, o MC Léo da Baixada é uma das principais vozes do funk da baixada santista, berço do gênero no estado. Com quase 300 mil assinantes no canal do YouTube e música escolhida como a oficial das Olimpíadas de 2016 ("Alma e Coração"), o músico natural de São Vicente conta que o que mais gosta no funk:

O que mais me seduz nos bailes, desde que comecei, é a arte do improviso, a batida, a rapidez e a eficiência que o artista tem que ter para conseguir falar uma palavra e na sequência rimar, além, claro, da essência e do que aprendi com a cultura e o movimento, porque o baile funk é o lugar em que as pessoas podem ser livres para se vestir, beber, usar e fazer o que quiserem. É possível ser quem se é.

As gírias do funk

Os detratores do movimento adoram falar que funk é sobre putaria. Também, mas não só. O gênero cria e exporta todo um léxico que acaba pegando no Brasil inteiro. Exemplo recente veio do "BBB 21", quando o participante Arthur Picoli tentou flertar com a atriz Carla Diaz dizendo apenas:

Aulas, cria.

A gíria viralizou, em especial pela falta de jogo de cintura do crossfiteiro. Abaixo, o significado de algumas das gírias mais populares do funk (o que pode mudar daqui a um mês, tá?).

'Revoada'
Esqueça o voo das aves. Revoada é aquela festa sem limites, tipo as de "American Pie", onde tem de tudo e ninguém é de ninguém. Hoje, o pessoal usa mais para falar de festas no geral, perdeu um pouco o sentido original.
'Aulas'
Essa nasceu no Rio de Janeiro e o pessoal de São Paulo adotou. "Aulas" é usado quando algo é muito bom ou alguém diz alguma coisa certeira, uma boa sacada. "Você acertou nessa dica, hein. Aulas!".
'Subiu o voucher'
Sabe quando você está com aquela mina bonita ou tira aquela onda? Então, é isso. Quando você está bem e ganha moral com os amigos, você sobe o voucher.
'Apita, meu sócio'
É uma saudação, quando você chama alguém, quer cumprimentar alguém. Um exemplo prático? "Apita, meu sócio, bora pro churras?".
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Sensualidade como diálogo e liberdade sexual como resistência

Corpos ocupando, celebrando e sendo celebrados nas ruas. A sensualidade é uma das principais marcas dos fluxos e passa por todos os frequentadores, independentemente da orientação sexual ou da identidade de gênero. "O baile é natural, orgânico e eu sinto que é cada vez mais importante estarmos nas ruas com nossos corpos, dançando e existindo", destaca Ari Ex.

Foi inspirada por colocações como esta que a dançarina e diretora da Frente Nacional de Mulheres no Funk, Renata Prado, 29, resolveu, criar o movimento, a fim de combater o machismo e evidenciar o protagonismo das mulheres na história do gênero, através de palestras, oficinas, workshops, visitas em escolas e unidades da Fundação Casa (antiga Febem).

Quando pensamos em mulheres no baile, pensamos em hipersexualização porque a sensualidade faz parte do lifestyle da funkeira. Pregamos a liberdade de sermos quem quisermos, onde e quando desejarmos. No entanto, o próprio movimento feminista, sobretudo o feminismo branco, não dá conta de toda complexidade da periferia, e enxerga isso como um reforço de hipersexualização. Nós queremos ser sensuais e respeitadas e isso é possível porque a sensualidade faz parte do universo do funk. Isso não significa que todas as mulheres devem/tem que ser sensuais, mas as que exercem isso têm todo direito.

Liberdade sexual, para Renata, é um tema importante dentro do funk ao reforçar o protagonismo da periferia e se consolidar como uma ferramenta política de emancipação a partir da música e do movimento:

Vivemos em uma sociedade hipócrita, que consome a cultura do sexo em vídeos, revistas e casas de swing, mas quando é a mulher funkeira e periférica falando abertamente sobre isso, a elite, que consome isso, tenta criminalizar. A Polícia Militar não quer ver a juventude organizada pelo viés cultural e se organiza para repreender, mas nós vamos resistir

Renata Prado, Diretora da Frente Nacional de Mulheres no Funk

A revolução vai ser (re)bolada

Antes da pandemia, era comum ver jovens reunidos no centro de São Paulo para ter aulas gratuitas de funk e de postura de palco, oferecidas desde 2011 pela Associação Nacional Liga do Funk. O projeto é gerido pelo produtor musical Marcelo Galático, 42, e foi pensado ainda no início dos anos 2000, quando ele começou a frequentar bailes na capital paulista e entendeu que ali estava a potência da periferia.

A ação tem como principal objetivo capacitar e profissionalizar jovens que queiram trabalhar com o movimento funk.

O funk é o movimento cultural que mais emprega pessoas na periferia. Há 20 anos, ser jogador era a única possibilidade de ascensão para o garoto da quebrada, hoje, ele também enxerga isso no funk e não é só sendo MC ou DJ, mas produtor de festas, fotógrafo, diretor, empresário, dançarino, entre outras ocupações.

Marcelo Galático

De acordo dados da Liga do Funk, um MC de funk em início de carreira fatura, em média, R$ 10 mil por mês em pequenas apresentações.

Esse dinheiro pode não parecer muito, mas, na maioria das vezes, é mais do que a família dele ganha para a sustentar a casa. Que pai/mãe de família que mora em periferia hoje ganha R$ 10 mil por mês? Por isso o funk se apresenta como essa possibilidade.

Assim, a Liga do Funk, que tem mais de 50 mil associados, incentiva e ensina os aspirantes à carreira como se profissionalizar e se manter no meio musical.

Na maioria das vezes, sair de casa para ir aos fluxos é a única forma que um jovem que vive na periferia de São Paulo tem para se divertir depois de trabalhar a semana inteira.

"No baile, eu sinto vontade de ficar suave, ouvindo uma música alta para não pensar nas neuroses. Em dia de baile, todo mundo troca ideia", conta MLK de Mel, que sempre está no fluxo acompanhada da amiga, Marcela Trava, 25:

Eu me sinto bem mais segura no baile de favela do que nos bailes do centro, de boy, mesmo sendo LGBTQIA+

As colocações das jovens frequentadoras dos bailes vão ao encontro do que considera o antropólogo Meno Del Picchia.

"São Paulo é uma cidade ríspida, não oferece tantos espaços culturais e tantos equipamentos de lazer (como parques, praças, centros esportivos) quanto deveria. O fluxo de funk na rua é uma resposta dessa juventude à rispidez da cidade. Uma resposta à especulação imobiliária que pressiona a cidade gerando um crescimento totalmente caótico e desordenado", pontua.

Para Renata, toda manifestação cultural que nasce nas periferias é, historicamente perseguida e recriminada:

"O Estado não gosta de uma juventude periférica organizada, independente —já que os bailes são organizados de forma autônoma, sem participação do poder público— e que consegue aproximar milhares de pessoas de todos os cantos, recebe turistas, gira a economia local e se torna uma potência".

07.dez.2019 - José Barbosa/Futura Press/Estadão Conteúdo