Da periferia para o mundo

Christian Malheiros avalia legado de 'Sintonia', que tem última temporada lançada nesta 4ª: 'Vamos realizar'

Ane Cristina De Splash, em São Paulo Pedro Napolináio/Netflix

Após cinco anos e cinco temporadas, "Sintonia" chega ao fim. A série sobre três amigos, Doni (Jottapê), Rita (Bruna Mascarenhas) e Nando (Christian Malheiros), lutando para sobreviver na periferia de São Paulo foi um sucesso na Netflix —a quarta temporada, lançada em 2023, alcançou o 1º lugar no top 10 Global de séries de língua não-inglesa do streaming.

A produção também se tornou palanque para o ator Christian Malheiros, 25, que chamou atenção ao encarnar o protagonista Nando, rapaz humilde que se tornou o ND da VA, um dos maiores nomes do tráfico.

Divulgação

Um ano antes da estreia em "Sintonia", Christian foi elogiado pela crítica internacional pela atuação em "Sócrates". O filme foi o selecionado do Brasil para concorrer ao Oscar de melhor filme internacional naquele ano —apesar de não ter sido classificado para a disputa.

No longa, ele vive um adolescente negro de 15 anos que lida com o luto, a extrema pobreza e a homofobia. Christian foi escolhido para o filme enquanto estudava na escola de artes cênicas da Prefeitura de Santos, no litoral paulista.

"As pessoas me perguntam qual a inspiração para fazer o Nando. Eu sempre falo: 'Gente, eu sou um jovem preto que veio da periferia. Não tem inspiração. Tem tudo o que eu vi, tudo o que eu vivi. Amigo, primo, gente que acaba indo para o tráfico. Essas são as minhas inspirações: o que eu vi, vivi, convivi, o que eu sei. Não é um personagem que eu tirei da minha cabeça", conta Christian em entrevista a Splash.

Quando eu levo e defendo esse personagem na cena, eu não vou defender que nem o cinema nacional sempre defende, de que preto é bandido, e bandido é psicopata, é sanguinário. Não, esse cara é um cara que está no crime, mas ele tem um calcanhar de Aquiles. Ele está ferindo a família de alguém e sabe que a dele também pode ser ferida. Então ele tem medo, tem receio, tem vontade de rir, tem vontade de chorar. Ele tem tudo!

Christian Malheiros

A série mostra as diversas faces do protagonista: Nando para os amigos, Luiz Fernando para a mulher e ND da VA para os comparsas. "Ele é o Nando, ele é o Luiz Fernando, ele é o ND. E, no final das contas, não é que ele é mais um e menos outro. Ele é tudo isso junto e misturado".

"Esse cara poderia ser um CEO de empresa, ele só não teve oportunidade. É nesse lugar social que eu gosto de analisar esse personagem. Não no lugar de que '[se] é bandido, é mau'. Seria muito cretino da minha parte e é muito cretino as pessoas que olham dessa forma. Ele não é assim. É uma pessoa", diz o artista.

Netflix

Reconhecimento inesperado

Enquanto vivia Nando, Christian recebeu diversas mensagens de presidiários, que se identificaram com o personagem. "[Foram] diversas mensagens de pessoas falando que queriam sair do crime. Falando: 'Eu estou reunindo forças para sair. Eu vejo o fim do seu personagem e estou vendo o meu fim também'".

O ator vê as mensagens com carinho. "Acho que temos que acolher. Como pessoas que pediram oportunidade porque queriam sair do crime, e eu fui e ajudei a ter essa oportunidade de trabalho em outros lugares".

O cinema no Brasil cumpre uma função social e não podemos fugir disso. Não é que a gente vai salvar o mundo, mas temos responsabilidade pelo que fazemos e pelas histórias que contamos. Eu não posso contar de qualquer jeito e também não posso deixar as pessoas sem alento.

Christian Malheiros

Netflix

A quarta temporada termina com a prisão de Nando, e a quinta se inicia com um óbvio declínio mental do personagem atrás das grades. "O sistema carcerário no Brasil contribui para o enfraquecimento psicológico das pessoas, tornando elas cada vez mais vulneráveis ao crime, às drogas, do que à reabilitação ou à ressocialização daquela pessoa".

Para Christian, falta oportunidade de uma ressocialização de verdade: "Estamos falando de um sistema prisional onde o cara que matou uma pessoa e o cara que roubou um pão na padaria ocupam o mesmo lugar [...] Quem rouba um pão é porque não tem para comer, concorda?! E o cara que matou alguém tem direito a uma segunda chance, a se arrepender e reconstruir a sua vida. Mas não temos caminho nem para o que roubou pão, nem para o que matou. Não temos nenhum tipo de luz no fim do túnel".

Chá de malandrops

O lançamento de "Sintonia" em 2019 inundou as redes sociais de cortes da série e de pessoas tentando reproduzir a forma de falar dos personagens, repleta de gírias. Eram muitos: "tá ligado?", "firmão", "mano" e papo de "levar pras ideia".

O linguajar não era nenhuma novidade para o protagonista. Periférico, ele conta que teve que mudar o jeito de falar para se encaixar. "Na época que comecei a estudar teatro, a forma que eu falava era errada para as pessoas, para os grandes intelectuais. Falar gíria era feio, então eu acabei tendo que aprender a falar 'bonito' para agradar e para conseguir algum tipo de oportunidade".

Christian ressalta a ironia, já que, hoje, falar gíria é visto como pertencimento. "Você vê o menino da zona sul, que nunca nem pisou numa favela ou vai só para os bailes, dando uma de bandido e falando gíria. Você vê, hoje, que a forma de falar da quebrada virou uma coisa meio popular, e não é mais criminalizado, não é mais marginalizado, como quando eu era pequeno".

Durante a produção de "Sintonia", apareceu uma gíria no roteiro que ele não queria falar de forma alguma. Tinha medo que virasse piada. "Eu reuni todo o ódio que tinha em mim e falei uma coisa assim: 'Tomou chá de malandrops?'. Isso virou uma coisa! Todo mundo falava na época, todo mundo me encontrava na rua, falava: 'tomou chá de malandrops?'. Não foi o efeito do que eu achei que seria".

Divulgação/Netflix

Legado

Para o artista, a série deixa o legado do sonho e da realização, em que três pessoas lutam para existir. E ao explicar, ele mistura a realidade de Christian Malheiros com a de Luiz Fernando.

"Para as pessoas da periferia, sempre vai ser mais difícil, mas conseguimos chegar lá. Com o nosso jeitinho brasileiro, tendo que engolir sapo, tendo que viver um monte de coisa. O legado que deixamos é que 'não é só porque somos de periferia, que somos marginais, somos do mal, somos bandidos'. As pessoas da periferia sonham, trabalham duro, muito mais que muita gente. Elas conquistam e realizam".

Acho que, para o pessoal que acompanha 'Sintonia', é quase como se as pessoas tivessem sonhado conosco. Eles sonharam com a gente durante cinco temporadas. Então fica esse legado: 'Vamos continuar sonhando e vamos realizar'.

Christian Malheiros

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