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'Sabotagem' de Bolsonaro na cultura cobra preço no cinema, diz Kleber Mendonça Filho

Kléber Mendonça Filho no Festival de Cannes de 2020; diretor faz parte do júri em 2021 - 25.mai.2019 - Pascal Le Segretain/Getty Images
Kléber Mendonça Filho no Festival de Cannes de 2020; diretor faz parte do júri em 2021 Imagem: 25.mai.2019 - Pascal Le Segretain/Getty Images

Da AFP, em Cannes

14/07/2021 12h48

A "sabotagem" do governo brasileiro à cultura está cobrando seu preço no cinema, considera o diretor Kleber Mendonça, que integra este ano o júri do Festival de Cannes presidido pelo americano Spike Lee.

Mendonça, premiado em 2019 em Cannes com o Prêmio do Júri (ex aequo) por "Bacurau", conversou com a AFP sobre as consequências dos cortes no setor da cultura decididos pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, bem como os debates para atribuir a Palma de Ouro, o prêmio mais cobiçado do cinema autoral.

Você já foi membro do júri da Berlinale e presidente da Semana da Crítica de Cannes. Agora que entregará a Palma de Ouro, sente uma responsabilidade maior?

É sempre uma responsabilidade. Cannes tem um peso histórico no cinema. Eu tenho consciência dessa importância.

Como o júri de Spike Lee é organizado?

Nos falamos a cada dois dias. A cada quatro ou cinco novos filmes, nós conversamos. Spike Lee é um artista muito antenado e os diálogos que temos tido têm sido todos muito democráticos, francos e bem-humorados.

Deve ser menos estressante do que competir pela Palma.

Claro que é menos estressante. Ao mesmo tempo, ter um filme na competição e ser bem recebido é algo que não se compara. Mas o trabalho no júri é muito prazeroso. São muitos diálogos de boa qualidade. É um privilégio poder conversar e entender como cada filme bate em cada pessoa... ver questões de coração, políticas, sociais de um ponto de vista francês, americano, brasileiro. É fascinante.

Há cinco anos o senhor denunciou um "golpe" contra Dilma Rousseff no tapete vermelho. Desde então, os protestos contra o governo continuaram ocorrendo em Cannes, a exemplo do que aconteceu após a exibição do filme "O Marinheiro das Montanhas", de Karim Ainouz. Além disso, o senhor denunciou o fechamento da Cinemateca em entrevista coletiva.

O que nós temos hoje no Brasil é uma sabotagem do sistema de apoio à cultura. O apoio à cultura faz parte da Constituição brasileira. Isso começou depois do Coup d'Etat (...) e com a entrada desse presidente as coisas ficaram ainda mais agressivas. Sobre o fechamento da Cinemateca (em São Paulo), nem sei como falar. É como se hoje o Brasil não tivesse aceso ao seu álbum de família. A Cinemateca não e só um depósito, é um lugar vivo com a memória do país.

Cinemateca - Danilo Verpa/Folhapress - Danilo Verpa/Folhapress
Fachada da Cinemateca Brasileira, em São Paulo
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Mesmo assim, o Brasil é o país da América Latina com maior presença neste festival.

'Medusa' faz parte do último lote de filmes que ainda foram feitos no sistema normal. Mesmo assim, eu sei que enfrentou problemas burocráticos criados artificialmente. Quando em 2019 tivemos aqui "Bacurau" e a "Vida invisível" e no festival de Berlim nós tivemos 18 filmes, estava muito claro que essa política de apoio ao cinema brasileiro finalmente mostrava os frutos. É irônico que a sabotagem começou no clímax de um bom momento.

Até que ponto o setor está mobilizado contra a "guerra cultural" de Bolsonaro?

Há um certo número de homens e mulheres da cultura que nunca ficaram calados. Felizmente eu sou uma dessas pessoas. Acredito que com a volta do pensamento democrático no Brasil, com as eleições no ano que vem, o sistema do apoio à cultura será reconectado e o Brasil vai voltar a respeitar (os) artistas e trabalhadores da cultura. Temos 300.000 trabalhadores na cultura. Eu conheço pessoas que estavam se sustentando com a cultura — iluminação, figurino — e hoje estão fazendo Uber. É muito triste.

Qual é o seu próximo projeto?

Estou escrevendo para rodar em Recife. Se chama "O agente secreto". Parei para vir para Cannes e quero muito voltar já com uma carga, uma energia desses filmes aqui. Eu lembro o último que vi em Cannes antes de filmar "Aquarius": "Memórias e Confissões" de Manoel de Oliverira, de 1982. É um filme sobre a casa dele. Dos filmes atuais não posso falar agora!