'Vale Tudo' é uma mala cheia de dilemas éticos e profissionais

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Quando se fala que "Vale Tudo" é a novela das novelas, não é apenas saudosismo barato de quem gosta de romantizar os anos 1980 e se esquece de que aquela também é a década da hiperinflação, do congelamento de preços, da escassez de carne e leite nos supermercados, dos pacotes de bolacha disputados a tapa entre irmãos, entre tantas outras escassezes que o pós-ditadura militar nos trouxe.
"Vale Tudo" é um marco na teledramaturgia brasileira porque nos coloca, enquanto povo, na frente de um espelho moral. Além disso, para mim e para muita gente, é uma novela que inspirou a ir à luta, e empreender.
A trama, especialmente a protagonista Raquel Accioli, me inspirou, com apenas 13 anos, a começar a vender brigadeiro, beijinho e os famigerados cajuzinhos nas lojas do centro de Curitiba. O negócio deu tão certo que minha mãe largou seu trabalho de retoquista em um laboratório fotográfico, que pagava apenas um salário mínimo, e se juntou a mim.
Fazíamos sanduíches naturais, tortas salgadas e doces, pudins (eu fazia seis por noite depois da escola), gelatina arco-íris, entre outras iguarias como panetones no Natal e ovos de Páscoa. Essa empreitada nos permitiu construir nossa casinha da Cohab, que minha mãe dizia que nunca colocaria no meu nome porque eu iria vendê-la, como fez Maria de Fátima (Glória Pires em 1988, Bella Campos em 2025), e largá-la na rua, como aconteceu com Raquel.
Talvez seja necessário explicar que o conflito central da novela é entre a mãe, Raquel, que acredita que se vence na vida trabalhando honestamente, e Maria de Fátima, filha que acredita que vale tudo para vencer na vida. No primeiro capítulo, Maria de Fátima vende a casa que o avô lhe deixou de herança e vai para o Rio tentar virar influencer.

Embora eu fosse um adolescente ambicioso que queria muito mais do que a vida me dava e morresse de vergonha quando meus amigos de escola cruzavam comigo com uniforme do colégio e caixa de isopor no calçadão da rua 15 de Novembro, eu sempre me inspirei na Raquel (Regina Duarte na versão de 1988, Taís Araújo na versão de 2025). Sempre acreditei na meritocracia (não acredito mais), no caminho do estudo (ainda acredito) e do trabalho (isso não é questão de acreditar ou não, mas para quem não tem privilégios é o único caminho).
Raquel foi a personagem que me fez chorar quando Fátima finge que não a conhece vendendo sanduíche na praia. Chorei porque vi ali a minha mãe, e minha mãe era muito Raquel: ética, trabalhadora e intransigente com falta de caráter e mentira. Roubar um chocolate que fosse nem pensar! E eu jamais faria aquilo com a minha mãe, apesar de todas as nossas diferenças.
E acho que "Vale Tudo" pega logo no primeiro capítulo exatamente por causa dessa atitude radical. Uma filha largar uma mãe solteira na rua fere o Brasil coletivamente, porque nós tendemos a sacralizar nossas mães, especialmente em um país em que 40% dos lares são mantidos por mães de filhos cujos pais não estiveram presentes. Eu sou um deles.

Raquel ainda é a personagem que me inspira em "Vale Tudo" porque é a personagem que não é apenas honesta, ela se esforça para ser ética o tempo todo. Em outro campo também é assim Solange Duprat (Lídia Brondi em 1988, Alice Wegmann em 2025), a jornalista que, junto a Glória Maria, também me inspirou a ser jornalista. Sem falar em Raquel que me inspirou de novo alguns anos atrás a trabalhar como guia turístico, agora que sou imigrante.
Sem falar que quando a novela reprisou no Canal Viva em 2011, tive o privilégio de assistir ao retorno de Odete Roitman na presença de ninguém menos que a própria Beatriz Segall, que me recebeu em seu apartamento no Leblon de Manoel Carlos e disse que a Globo não tinha elenco para fazer um remake.
É impressionante como essa novela vai e volta para a minha vida. E acho que foi isso que sempre me atraiu na ficção: não tanto a fantasia pura, mas a história que rompe a quarta parede e nos coloca nesse espaço em que não conseguimos ver o limite entre a realidade e a ficção.
Quando Gilberto Braga teve a ideia de escrever "Vale Tudo", em 1988, ele disse, como relata Mauricio Stycer em seu livro, que se inspirou num almoço de família em que um tio fiscal da Receita Federal era criticado por nunca ter recebido propina e, portanto, continuar pobre. Era chamado de burro pelos outros parentes.
E é aí que a realidade e a ficção se confundem magistralmente em "Vale Tudo". Mais especificamente em duas situações. A primeira é a mala de dólares que Marco Aurélio (Reginaldo Faria em 1988, Alexandre Nero em 2025) desviou da empresa para lavar em Porto Rico e que (não vou entrar em detalhes como) vai parar na mão da Raquel.
Ela, honesta como é, quer entregar o dinheiro para a polícia. Ivan (Antonio Fagundes em 1988, Renato Góes em 2025), seu namorado, quer ficar com o dinheiro. Esse é o primeiro dilema.

Em paralelo, Odete Roitman (Beatriz Segall em 1988, Débora Bloch em 2025), a dona da empresa de aviação da novela, tenta subornar Solange, namorada de seu filho, Afonso (Cassio Gabus Mendes em 1988, Huberto Carrão em 2025), com um emprego de jornalista em Paris. Tudo o que ela tem que fazer em troca é convencê-lo a não ficar mais morando nesse paisinho que ela odeia e ir tocar a empresa direto da França. Esse é o segundo dilema.
Claro que a audiência reage. E nos dois casos a reação é, em sua maioria, contra Raquel e Solange. Raquel tem sido chamada de burra e chata. E Solange de militante da esquerda caviar, afinal de contas quem recusaria um emprego em Paris? Eu mesmo adoraria que alguém batesse à minha porta me oferecendo tal privilégio. Mas será que eu aceitaria? E a mala de dólares?
Quanto à mala de dólares minha resposta é claríssima. Dinheiro sujo sempre vem acompanhado de um bandido que o perdeu e que não hesitaria em consegui-lo a qualquer custo. Não acredito em mala de dinheiro aparecendo, e ficaria apavorado se ficasse com o dinheiro. Nem ia conseguir dormir de medo de alguém aparecer atrás da mala.
No caso do emprego, tendo também a concordar com a Solange. Claro, ela está bem empregada, e a arrogância de uma pessoa rica achando que a ética das pessoas está à venda, particularmente, me desperta uma tremenda antipatia. Essa é uma questão muito interessante sobre o mundo corporativo, aliás. Uma coisa é ser indicado a um trabalho por seus méritos profissionais. Outra coisa é essa mistura promíscua de vida privada e vida profissional que geralmente resulta em situações desagradáveis e de abuso de poder.
A Raquel é aquela personagem que toda pessoa dita de bem diz que é, mas que no fundo ninguém quer ser. Porque para ser honesto e ético é necessário um esforço diário de não tolerar as pequenas corrupções do dia a dia. Quando Solange diz que é resistência, embora soe piegas e panfletário, o uso da palavra está correto.
É necessário resistir à corrupção. E, no fundo, tanto em 1988 quanto em 2025, a discussão central de "Vale Tudo" é: vale a pena ser honesto? Eu diria que, na atualidade, em que existe uma polarização política nacional cujo ponto central é a palavra corrupção, é mais relevante ainda.
Então, por que continuamos sendo coniventes com as Odetes e ridicularizando as Raquéis e as Solanges? Alguns capítulos atrás, Raquel foi criticada por ter respondido à passivo-agressividade classista de Odete Roitman na frente de seu namorado, que trabalha para a empresária. Uma outra situação que divide opiniões. Afinal de contas, Raquel deveria ter feito a superior e ignorado a patroa de seu namorado para não criar problemas em seu trabalho? E Ivan, deveria ter se posicionado e defendido a mulher?
Estou curioso pelas opiniões (respeitosas, por favor). E antes que me classifiquem como alguém que se coloca como moralmente superior aos que aceitariam o emprego e que ficariam com a mala de dólares, respondo que não é nada disso. Ivan tem toda razão quando diz que Raquel está sendo covarde. Antes de tudo eu sou covarde. Tenho pavor de me imaginar metido com bandido, porque eu jamais sobreviveria cinco minutos no meio da bandidagem. É um talento que me falta.
E tem mais um motivo muito importante: tem uma novela inteira feita sobre essa temática, escrita por Janete Clair: "Pecado Capital". Nela, o protagonista Carlão encontra uma mala cheia de dinheiro roubado em seu táxi. Spoiler alert: ele acaba morto na construção atrapalhando o sábado.
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