'Arte é mergulho político': finalista do Jabuti explica olhar para luta gay

Quando Ian Fraser decidiu reescrever "Cândido", de Voltaire, para os tempos atuais, não imaginava que criaria uma cidade em peregrinação eterna, um protagonista gay negro em busca de redenção e uma metáfora sobre a identidade brasileira —tudo isso durante a pandemia.

Em "Cartografia para Caminhos Incertos" (2025), livro lançado pela Intrínseca, o autor mescla realismo mágico, sátira política e uma questão pessoal: "O que é ser brasileiro quando você cresceu entre duas línguas e nunca se sentiu totalmente parte de nenhum lugar?"

A pergunta ecoa na trajetória de Fraser, 41, neto de norte-americano, alfabetizado primeiro em inglês, mas criado em Salvador. Em entrevista a Splash, ele revela que a cidade móvel de Redenção —cenário do livro— nasceu dessa inquietação. Redenção, cidade mágica que se move, abriga Mané —um homem simples em busca do beijo perfeito. Ao perdê-la, ele embarca numa jornada pela Bahia, descobrindo lugares fantásticos e, sobretudo, a si.

Redenção é uma alegoria do processo identitário: a gente nunca chega. Quando chega, para de respirar. [...] Presenteei meu protagonista, Mané, com duas lutas que admiro: ser negro e gay num país que insiste em negar ambos.

O autor explica de onde surgiram suas inspirações para o personagem. "Muito do que Mané vive eu penso ou vivi. Contudo, há duas perspectivas de Mané que fogem da minha vivência: sou um homem branco, hétero e cis."

Sobre criar Mané, seu primeiro protagonista gay, Fraser é enfático. "Não é meu lugar falar pela comunidade, mas me emociona ver autores LGBTQIA+ lotando bienais e jovens gritando por representação. Presenteei Mané com essas lutas porque as acho dignas. Ele não é perfeito —ninguém é—, mas carrega humanidade".

O cuidado na criação da personagem veio de parcerias. "Me cerco de pessoas que me alertam quando um risco de estereótipo aparece. Empatia é essencial".

Cartografia para caminhos incertos
Cartografia para caminhos incertos Imagem: Divulgação/ Intrinseca

Pandemia

Escrito entre 2020 e 2022, o livro foi "terapia contra o desespero". Fraser associa o realismo mágico à resistência política. "Ele surgiu em ditaduras latino-americanas como forma de falar do indizível. Na pandemia, vivemos algo similar: direitos sendo arrancados, gente morrendo sem ar, famílias despedaçadas pelo confinamento. Tudo isso está no livro, até nas piadas".

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Antes de virar romance, a história foi a peça "Ensaio Para uma Redenção", vencedora do Prêmio Braskem de Teatro em 2021. A adaptação, feita durante o isolamento, usou cenas filmadas em casa —"um híbrido de teatro e cinema que só a urgência daqueles dias explica".

Autor de "A Vida e as Mortes de Severino Olho de Dendê" (2022), marco da fantasia brasileira e do noir carnavalesco, Fraser diz que alternar gêneros é questão de sedução. "As ideias é que me escolhem. Quando uma me captura, meu corpo reage: começo a escrever como quem respira", afirma ele, que foi finalista do prêmio Jabuti na categoria romance de entretenimento pela obra.

Ian Fraser já teve o reconhecimento de público e crítica, como o recebimento do selo "João Ubaldo Ribeiro" de jovem autor inédito para o livro "O Sangue Agreste" (2014), categoria criada exclusivamente para que ele pudesse participar e desde então, nunca mais usada.

Sobre o que o motiva, resume: "Escrevo sobre o Brasil porque identidade é o único material que temos. Sem ufanismo: é abraçar o belo e combater o feio. Arte é mergulho político".

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