Madonna, a maior, faz no Rio a festa da família nada tradicional brasileira
Eram 22h20 quando uma turma surgiu na passarela construída para conectar o Copacabana Palace ao palco de 800 m² do show de encerramento da turnê Celebration. Na área VIP, de onde era possível avistar a movimentação, convidados começaram a gritar "Madonna! Madonna!". Era alarme falso... O show mesmo só começaria 16 minutos depois, com 50 minutos de atraso, com a mestre de cerimônias do show, Bob The Drag Queen, vestida de diva da Renascença Francesa, puxando palavras de ordem de um baile vogue.
Com músicas do início da carreira de pano de fundo, Bob foi esquentando o público, falando da rainha do pop com imagens da cantora no telão, fazendo um pot-pourri desses 40 anos de carreira, quando finalmente ela subiu ao palco debaixo de um halo gigante de luz, usando um quimono e uma coroa na cabeça. Foi difícil ouvir sua voz cantando "Nothing Really Matters" sob tantos gritos do público de 1,6 milhão de pessoas, segundo a Riotur.
Com uma câmera subjetiva direto do palco, Madonna é rodeada por bailarinos o tempo todo, e nessa música acontece o primeiro beijo gay. O público vibra. É preciso lembrar que o Rio de Janeiro é historicamente uma cidade libertária, que nos últimos anos tem sofrido reveses conservadoristas.
Após um longo papo com o público, durante o qual elogiou o Rio, posicionando a cidade como o lugar mais bonito do mundo, Madonna anunciou que iria tocar a primeira música que compôs na guitarra e que foi apresentada pela primeira vez no CBGBs. Ela então mostrou "Burning Up" numa versão crua e rock'n'roll, possivelmente muito parecida com a que ela tocou no clube, um inferninho nova-iorquino que foi chave na formação do pós-punk e do rock nos anos 70, 80 e 90.
"Open Your Heart" veio em seguida, avançando alguns anos e chegando em 1986 com a Madonna do segundo álbum, "True Blue". Belíssimas ilustrações à la Salvador Dalí, de autoria do brasileiro Ricardo Gomes, diretor de arte da turnê Celebration, e dançarinos partindo pra cima de Madonna dão um ar de cabaré burlesco ao número. Parecia que o momento de Vogue estava por vir e a ansiedade aumentou sobre quem seria o convidado de Madonna para julgar os dançarinos em seu baile vogue encenado, que já recebeu convidados como a cantora Sevdaliza e a DJ Honey Dijon durante a turnê.
"Holiday" começa com um banho de moda e dança embaixo de um globo de espelhos gigante. Uma aula de diversidade e de cultura queer com transmissão ao vivo pela Globo. Conservadores dirão que é libertinagem, mas é só Madonna e sua gangue celebrando um feriado.
"Live to Tell" traz imagens de personagens vítimas da Aids, como o grafiteiro Keith Haring, amigo de Madonna, além de Freddie Mercury e Robert Mapplethorpe. Na versão brasileira, aparecem Cazuza, Renato Russo e Betinho. Um clown que entrega a ela um coração inflável finaliza a homenagem. O momento é emocionante e há choro na plateia.
Uma grande roda com bailarinos que simbolizam Jesus e padres com incensários pelo palco criam um dos momentos mais impactantes do espetáculo. Todos sabem da ligação de Madonna com o catolicismo e, aqui, ela a representa com a dramaticidade de quem viveu entre a culpa e a afronta numa interpretação belíssima e lenta de "Like a Prayer", que terminou com uma homenagem a Prince. Destaque aqui para a participação de David, filho de Madonna, tocando guitarra vestido como o gênio de Minneapolis.
Um ringue de boxe surge no meio do palco nos primeiros acordes de "Erotica", que ela canta encarnando uma Marilyn Monroe boxeadora dando margem a muitas interpretações. A famosa cama de veludo e videoclipes antigos aparecem no palco com a Madonna do passado simulando um sexo lésbico com a Madonna de hoje. Deu para imaginar a gritaria da bancada conservadora.
Estava em curso a sessão sexy do show com uma roda de bailarinos e "Justify My Love", lenta e arrastada, reverberando pela praia, com prédios, restaurantes e hotéis com gente apinhada nas janelas.
De camisola, ela emenda "Fever", e um telefone cenográfico toca. Surgem dançarinas de topless que a cercam para a música "Hung Up", seu retorno à disco music. A praia explode no primeiro momento dançante de verdade da noite.
O show é teatral, queer, autobiográfico, denso. Quem buscava uma festona hedonista pura e simplesmente teve que se contentar com a ópera burlesca sobre vida e a obra de uma das maiores artistas da nossa época.
Madonna salta para "Bad Girl" e quem brilha é sua filha Mercy James ao piano. Depois, outra filha, Estere, brilha como DJ e dançarina em "Vogue", no momento do ballroom, homenagem aos bailes nova-iorquinos que a rainha pop ajudou a divulgar pelo mundo nos anos 90.
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Quero receberComentada ao longo da semana, a participação de Anitta no show foi, no final das contas, no papel de jurada dos abusados dançarinos do baile vogue que Madonna promove no palco. Eles entram, desfilam, se jogam pra cima das duas e houve até simulação de sexo oral.
Mostrando que é mais teatro do que show, quase não se veem instrumentos no palco, a não ser por momentos de solistas, como a própria Madonna e as participações dos filhos tocando. "Die Another Day" foi exemplo disso, praticamente um videoclipe encenado ao vivo, com ela e dois bailarinos extremamente sincronizados no palco, sob uma belíssima e dramática iluminação. Tudo é tratado com um olhar audiovisual e cênico. Um espetáculo costurado pela história musical de Madonna em todas as suas fases.
"Don´t Tell Me" trouxe a Madonna country de 2000 —quase 25 anos antes de Beyoncé investir no gênero.
Madonna estava falante, então teve mais um momento de conversa: "Eu já tive homens brasileiros e sei o que significa safada e bunda suja", disse Madonna. Ela agradeceu pelo amor e devoção dos brasileiros. "Sinto a bandeira brasileira no meu coração e na minha buceta. Estou no céu", ela disse enquanto tomava fôlego para seguir para a última parte do show. "Sou só uma garota de Michigan. Nada disso era para dar certo, mas deu, e cá estou. Lá se vão 40 anos de carreira."
Madonna lembrou do aniversário de Keith Haring e agradeceu à população queer, que sempre a apoiou: "Vou lutar por vocês até a minha morte." Ela pediu ao público que acendesse os celulares antes de tocar no violão uma versão de "Express "Yourself".
Depois de uma versão acústica de "La Isla Bonita", viria um dos momentos mais forte do show, um grupo de ritmistas da escola de samba Viradouro puxando o hit "Music".
E, então, lá estava Pabllo. Nossa drag mais famosa liderou o número que trouxe o morro carioca para a modernosa "Music". A camisa da seleção, usada por Madonna e Pabllo, ganhou ressignificação e voltou para o seu lugar de origem; o povo humilde, preto e de toda e qualquer orientação sexual.
Imagens nos sete telões trouxeram uma videobiografia de diversos momentos da cantora, com falas icônicas, preparando o público para uma imersão eletrônica e imagética. Ela revisitou seu álbum mais eletrônico numa versão potente e moderna de "Ray of Light".
Teve ainda uma interpretação emocionada de "Rain", um de seus hits lentos de maior sucesso antes de ela prestar uma homenagem a Michael Jackson com a silhueta dos dois dançando juntos ao som de "Billy Jean" e "Like a Virgin" com fotos dos dois juntos projetadas no telão.
Em "Bitch I'm Madonna", dançarinos encarnando as diversas fases de Madonna, além da própria, se juntaram no palco para dar a dimensão da versatilidade de sua carreira. Nesse momento, pudemos ver a riqueza dos figurinos criados pela dupla de estilistas Eyob Yohannes e Rita Melssen, inspirados em looks icônicos usados ao longo da carreira, criações de designers como Jean Paul Gaultier e Versace, entre outros.
Em pouco mais de duas horas de show, Madonna entregou muito mais do que o valor pago a ela pelo governo do Rio e pelos patrocinadores. Ela entregou dignidade, orgulho, autoestima, solidariedade e ainda devolveu ao público em geral a alegria de usar a camisa com as cores verde e amarela. Foi uma festa da família nada tradicional brasileira liderada pela maior artista pop do nosso tempo.
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