Por que não devemos cobrar imparcialidade no documentário de Xuxa?
O documentário de Xuxa entrou em uma esquina polêmica quando abordou o assunto Ayrton Senna. Ao retratar o relacionamento entre a apresentadora e o automobilista, e especificamente como Xuxa lidou com sua morte, em 1994, o apagamento de Adriane Galisteu, que era a namorada do piloto na ocasião do fatídico acidente, fez muitos questionarem a parcialidade do projeto do Globoplay.
O mito do documentário imparcial já foi bastante questionado, e o próprio documentarista João Moreira Salles, de referências como "Notícias de uma Guerra Particular" (1999) e "Santiago" (2006), é enfático ao reforçar a inexistência da parcialidade no gênero documental. A premissa de qualquer documentário parte da defesa de uma tese, e a simples existência de pontos de vista e recortes, o ponto de partida para qualquer projeto, implica na predileção de um lado.
Estudos teóricos do audiovisual afirmam que existem seis tipos de documentário, e embora cada um deles tenha uma relação diferente com os fatos e a realidade, em todos o ponto de vista do diretor, ou do autor, é levado em consideração. "Não existe documentário imparcial, ele sempre terá o viés de seu realizador", explica o colunista de Splash Roberto Sadovski. "Documentário não é reportagem, então o compromisso é velado."
O pesquisador americano Bill Nichols defende que há documentários dos mais poéticos aos mais performáticos. Por isso, cair na armadilha de acreditar que existe mesmo a imparcialidade é um pouco ingênuo: isso não deve ser nem mesmo a proposta do material.
Mas o que isso quer dizer no caso do documentário de Xuxa?
"A Xuxa é um dos maiores fenômenos do entretenimento brasileiro e um patrimônio histórico-cultural, com essa ambivalência entre a necessidade de se reinventar para manter relevância e a de preservar a memória de seu trabalho para as próximas gerações", contextualiza o professor e crítico de cinema Filippo Pitanga. "Toda esta série documental foi pensada com essas 2 coisas em mente, independente do envolvimento dela."
As fronteiras entre jornalismo e documentário podem ser sinuosas em alguns casos, mas é importante levar em consideração que em apenas um deles a subjetividade pode e deve fazer parte da narrativa. No caso de "Xuxa", o ponto de vista que é favorecido é o dela. Se o documentário fosse de Marlene Mattos, por exemplo, o encontro entre as duas poderia até ser o mesmo, mas é muito provável que a conclusão fosse bem diferente.
Em entrevista a Splash, a diretora Cassia Dian revelou que Xuxa não queria um documentário "isentão". Isso significa que ela mesma gostaria de ser confrontada pelos momentos espinhosos de sua carreira, mas também evidencia que até mesmo as críticas mais enfáticas acontecem diante de seu consentimento.
"Na primeira reunião que a gente fez com a Xuxa, ela falou: 'Eu não quero um documentário chapa-branca. Vocês podem abordar tudo da minha vida'. Ela foi muito franca e muito aberta para que a gente realmente pudesse contar a história dela de maneira muito transparente", declarou.
No entanto, o apagamento de Galisteu escancarou o que até poderia ser óbvio, mas não é: toda escolha narrativa deve ser vista desta forma, e o espectador precisa considerar de quem são as vozes envolvidas naquela construção. A memória pública do caso, é claro, contou contra as escolhas do material.
"Quem faz o recorte dos comentários em cima das imagens de arquivo é a memória dos entrevistados selecionados, todos muito próximos a ela, com única exceção de Marlene Mattos, justamente quem cria a maior dialética e algumas saias justas que o estilo sóbrio mais diplomático e menos sensacionalista do Bial tem até problemas em lidar e editar na montagem final", pondera Filippo. "Ainda assim, o documentário traz sim um razoável entretenimento nostálgico de um ícone que anda sendo meticulosamente revisitado e reconstruído para as novas gerações", reflete.
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