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Vender livro de Hitler é crime? Veja o que diz a lei e suas ressalvas

Homem que proferiu ofensas racistas e homofóbicas em biblioteca de São Paulo estava lendo um exemplar do livro de Hitler - Reprodução/Tiwtter/@ediannemariaMTST
Homem que proferiu ofensas racistas e homofóbicas em biblioteca de São Paulo estava lendo um exemplar do livro de Hitler Imagem: Reprodução/Tiwtter/@ediannemariaMTST

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

03/08/2022 15h27

O livro que inspirou uma legião de admiradores e seguidores do regime nazista, escrito pelo ditador alemão Adolf Hitler, "Minha Luta" (Mein Kampf, em alemão), voltou aos holofotes após um homem de 39 anos ter sido preso ontem em flagrante, em uma biblioteca de São Paulo, disparando ofensas racistas e homofóbicas enquanto segurava um exemplar da obra.

Apesar de proibido na cidade do Rio de Janeiro, o livro, com mais de 1.900 páginas, hoje pode ser comprado facilmente em pequenas livrarias e até grandes lojas de departamento na Internet.

Em 2015, 70 anos após a primeira publicação, os direitos autorais de "Minha Luta" se tornaram de domínio público. Desde então, a obra passou a ser livremente explorada pelas editoras.

Atualmente, novos exemplares do livro podem ser comprados pela Internet, em grandes lojas de departamentos e marketplaces, como Amazon, Lojas Americanas, Submarino e Shoptime, entre outras. Edições especiais podem ser encontradas em pequenas livrarias e com vendedores particulares em plataformas como Enjoei e Mercado Livre.

Em nota, a Americanas informou que no marketplace de Americanas, Submarino e Shoptime existem mais de 132 mil lojas parceiras que vendem diretamente seus produtos em várias categorias aos clientes finais. "Se e quando identificada qualquer desconformidade, adotamos as providências necessárias, que vão desde a retirada do item até o descredenciamento da loja".

O UOL entrou em contato com a Amazon para obter um posicionamento e atualizará o texto caso haja um posicionamento.

A venda é permitida, mas com ressalvas

Segundo o advogado Marcelo Feller, apesar de haver uma proibição de venda e circulação restrita ao município do Rio de Janeiro, por força de lei municipal sancionada este ano, não existe lei federal que proíba a comercialização desse ou de outros livros de inspiração nazista no Brasil.

Como contrapartida, ele cita, o artigo 20 da Lei 7716, que prevê ser crime praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. A pena é de reclusão de um a três anos e multa.

"Dependendo da intenção por trás da venda desse material, pode haver crime. Ou seja, se a pessoa ou empresa que está vendendo esses livros pretende apenas a divulgação literária e histórica dos fatos, não é crime. Mas se ela o faz com a intenção de disseminar ideais nazistas, em detrimento dos direitos de uma minoria, é crime", explica o advogado

Feller relembra a história do livreiro Siegfried Ellwanger, um editor brasileiro de livros antissemitas e de negação do Holocausto. Condenado por racismo pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no início dos anos 2000, ele recorreu ao STF (Supremo Tribunal Federal), que julgou por bem manter a condenação.

"A intenção de Ellwanger não era a discussão histórica, mas sim a disseminação dos ideais nazistas. Com esse julgamento, a Corte chegou a um entendimento sobre dois pontos. O primeiro é que o antissemitismo, a homofobia e a transfobia se enquadram como crimes de racismo. O segundo foi a discussão sobre os limites à liberdade de expressão".

Feller alerta para o fato de que os brasileiros muitas vezes confundem os direitos previstos nas leis brasileiras com os declarados nas leis americanas. Segundo ele, não existe no Brasil o conceito de liberdade irrestrita de expressão.

Defender e disseminar nazismo é crime

Professora de direito internacional, a advogada Patrícia Gorisch concorda com Feller. Muitas vezes, o que se vê acontecer no Brasil é que os brasileiros pensam que podem ter os mesmos direitos previstos na constituição americana. Mas é um erro pensar assim.

"A defesa dos ideais nazistas não se trata de mera liberdade de expressão, ela é enquadrada no crime de racismo. A liberdade de expressão no Brasil é mitigada pela própria Constituição Federal, que garante a dignidade da pessoa humana. As liberdades que a gente vê nos EUA, que são plenas, no Brasil são mitigadas. Você pode ter liberdade, desde que não atinja a dignidade da pessoa humana".

Na opinião de Feller, apesar de a venda dos livros não ser crime, uma associação que defenda interesses de alguma das minorias atingidas pelos ideais nazistas poderia ingressar com uma ação na Justiça acionando as empresas, para questionar sua intenção com as vendas.

"É possível chamar à responsabilidade empresas que hoje se escondem sob um discurso de que são apenas intermediadoras das vendas. Numa tentativa de total afastamento da responsabilização, elas se omitem e permitem o comércio desse tipo de produto que carrega um conteúdo extremamente nocivo a pessoas suscetíveis.

Patrícia lembra que a modernidade e a tecnologia trazem um elemento novo quando se trata de casos como o que ocorreu na biblioteca de São Paulo: as câmeras de celular. Segundo a professora, a partir do momento em que alguém é gravado em vídeo cometendo o crime, gera-se uma prova incontestável contra essa pessoa.

"A primeira coisa que me chama atenção nesse caso da biblioteca é a ausência de identidade cultural, que o brasileiro não tem. Nós somos um povo miscigenado. O interessante é que o rapaz do vídeo gravado na biblioteca em São Paulo é uma pessoa que não seria considerada branca na Alemanha de Hitler. Ele é pardo, mas não se enxerga como pessoa pertencente a essa identidade".

O livro

O livro "Minha Luta" sempre esteve cercado de polêmica, desde o seu lançamento. Ele foi escrito por Hitler enquanto esteve preso, em 1923, após ajudar a organizar um golpe de estado na Alemanha, inspirado na "Marcha sobre Roma", de Benito Mussolini, na Itália.

Nele, Hitler descreve pela primeira vez seus ideais antissemitas, creditando ao povo judeu a expansão das ideias marxistas que poderiam resultar no comunismo. Ele afirma em sua obra que os judeus pretendiam, assim, assumir o controle da Alemanha.

O livro, lançado em dois volumes, se tornou um sucesso de vendas durante o regime nazista. Porém, após o final da Segunda Guerra, cerca de 12 milhões de exemplares foram queimados como forma de evitar que as ideias ali contidas continuassem se espalhando.

Muitos originais sobreviveram à queima, escondidos em bibliotecas de livreiros particulares. O Estado da Baviera se tornou herdeiro dos direitos autorais mas se recusou a republicar a obra por causa do Holocausto.