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Povo que paga: 4 artistas críticos à lei Rouanet que ganharam verba pública

Sérgio Reis, Latino e Netinho são alguns dos artistas que criticam a Lei Rouanet - UOL
Sérgio Reis, Latino e Netinho são alguns dos artistas que criticam a Lei Rouanet Imagem: UOL

Rebecca Vettore

Colaboração para UOL

01/06/2022 11h26

O mundo dos famosos se dividiu nos últimos dias depois que uma discussão entre a cantora Anitta e o sertanejo Zé Neto, da dupla com Cristiano, colocou novamente a Lei Rouanet em pauta. Tudo começou quando ele provocou durante um show os artistas que dependeriam de verba pública para se apresentarem. "Nosso cachê quem paga é povo", disse.

Zé Neto não está sozinho nessa. Sérgio Reis, Latino e Netinho criticam o incentivo à cultura. Em comum, todos eles já ganharam dinheiro com shows pagos por prefeituras, muitas vezes, de cidades pequenas. O cachê, portanto, vem da verba pública.

E há uma diferença importante entre os show feitos com verba das prefeituras ou com verba da Lei Rouanet: o teto de gasto e o controle.

Nos shows pagos pela prefeitura, é escolhido o artista, negociado um valor e feito um contrato sem licitação ou tomada de preço com vários fornecedores, já que há apenas um fornecedor possível, que é o próprio cantor. Além do valor do show, a prefeitura costuma bancar todos os custos do artista, como transporte, hotel e camarim. Não há limite de cachês.

Como não há controle específico, além da prestação de contas geral do município, somente o Tribunal de Contas, o Legislativo Municipal ou o MP (Ministério Público) podem questionar os gastos relativos a essas apresentações.

Já nos shows pagos pela Lei Rouanet, o preço de cada apresentação é de até R$ 3.000. Antes, era R$ 45 mil. Quando há uma orquestra, o limite é de R$ 3.500 por músico. O maestro recebe R$ 15 mil.

A Lei Rouanet concede incentivos fiscais a pessoas físicas e empresas privadas patrocinadoras de produtos ou serviços na área da cultura. Para isso, o artista precisa enviar projeto à Secretaria Especial da Cultura, detalhar os gastos e apresentar três orçamentos de fornecedores diferentes. A prestação de contas pode ser acessada no portal dedicado a isso. Veja abaixo alguns exemplos de quanto cada um pode ganhar em eventos públicos:

Zé Neto

Zé Neto - Divulgação - Divulgação
Zé Neto
Imagem: Divulgação

Zé Neto, que se gabou de não depender da Lei Rouanet, fez a crítica durante um show da dupla pago pela prefeitura de Sorriso, cidade de Mato Grosso a 400 quilômetros de Cuiabá. O valor total do cachê foi de R$ 400 mil.

"Somos artistas que não dependemos de Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente", disse o sertanejo.

No entanto, o jornalista Demétrio Vecchioli listou outros shows da dupla que foram pagos por prefeituras, todos com valores que variam entre R$ 550 mil e R$ 180 mil, segundo os documentos municipais.

Sérgio Reis

Sérgio Reis - Reprodução/Instagram/@serjaooficial - Reprodução/Instagram/@serjaooficial
Sérgio Reis
Imagem: Reprodução/Instagram/@serjaooficial

Em entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo, Sérgio Reis afirmou que o cachê pago pelas prefeituras "é dinheiro para o público, não é dinheiro público".

Reis fez essa afirmação numa tentativa de diferenciar esse tipo de pagamento do dinheiro via Lei Rouanet, que é criticada pelos apoiadores de Bolsonaro.

Ao longo da sua carreira, ele já utilizou diversas vezes do dinheiro de prefeituras, mas diz que se recusa a pegar verba do incentivo à cultura.Além de shows em cidades pequenas, Sérgio Reis já recebeu R$ 126 mil do governo do Paraná por participar de campanhas publicitárias em 2021, e outros R$ 398,2 mil em verbas de origem pública pelo Sest (Serviço Social do Transporte) e o Senat (Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte), em troca de divulgação de iniciativas das entidades nas redes sociais.

Latino

Latino - Daniel Pinheiro / Divulgação - Daniel Pinheiro / Divulgação
Latino
Imagem: Daniel Pinheiro / Divulgação

Latino, que também já recebeu cachê público em ao menos uma ocasião, aproveitou a polêmica de Zé Neto para falar mal de Anitta.

"Enquanto alguns robozinhos trabalham pra sustentar o marketing do 't***' internacional, papai aqui segue fazendo shows há 30 anos. Detalhe, sem ganhar um centavo de mentoria da oposição."

Enquanto alguns robôzinhos trabalham pra sustentar o mktg do "toba" internacional, papai aqui segue fazendo shows à 30 anos. Detalhe, sem ganhar um centavo de mentoria da oposição. #Bolsonaro2022

-- LATINO (@Latinooficial) May 14, 2022

Em 2014, Latino ganhou R$ 120 mil pela participação em um show de 35 minutos no evento "Arena Agosto Show", promovido pela prefeitura de Lagoa Santa (MG).

Em contato com Splash, a assessoria jurídica do cantor declarou: "Latino nunca utilizou a Lei Rouanet em seus projetos. Ao longo da carreira foi contratado para realização de shows de prefeitura, do mesmo modo que inúmeros artistas".

Netinho

Netinho - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Cantor Netinho
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Em 2019, o cantor Netinho usou as redes sociais para comentar a polêmica que envolveu Daniela Mercury após o lançamento da música "Proibido o Carnaval", em parceria com Caetano Veloso, e afirmou que nunca usou a Lei Rouanet.

De acordo com apuração do jornal O Globo, Netinho foi outro cantor que recebeu dinheiro público em show. Em fevereiro de 2020, ganhou R$ 125 mil por uma apresentação de uma hora e quarenta minutos, da prefeitura de Corumbá (MS).

E o Gusttavo Lima?

Gusttavo - Reprodução/ Instagram @gusttavolima - Reprodução/ Instagram @gusttavolima
Gusttavo Lima
Imagem: Reprodução/ Instagram @gusttavolima

Outro nome que chamou a atenção nessa história é o do sertanejo Gusttavo Lima, por ser um dos maiores cachês do meio. Ele não declarou publicamente que é contra a Lei Rouanet, mas é um forte apoiador das falas de Bolsonaro, que sempre se posicionou contra a antiga forma como os artistas eram beneficiados pelo incentivo.

Com a repercussão dos cachês, muito começou a se comentar sobre o uso de verbas públicas de prefeituras com shows de cantores sertanejos, até que, em 25 de maio, o MPRR (Ministério Público do Estado de Roraima) abriu investigação sobre a contratação de Gusttavo Lima na cidade de São Luiz (RR), com cachê fixado em R$ 800 mil.

A população do município é estimada em 8.232 pessoas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Dividindo o cachê acordado pelo número de moradores de São Luiz, cada cidadão estaria pagando cerca de R$ 97 pelo show.

O artista foi contratado para participar da 24ª Vaquejada e da 13ª Feira de Agronegócios de São Luiz, programadas para o mês de dezembro. A Promotoria solicitou informações sobre a contratação do show, como os recursos foram arrecadados e também se haverá retorno para a municipalidade.

Em contato com Splash, a equipe jurídica do cantor enviou uma nota afirmando que o valor do cachê dele é "fixado obedecendo critérios internos, baseados no cenário nacional, tais como: logística (transporte aéreo, transporte rodoviário, etc.), tipo do evento (show privado ou público), bem como os custos e despesas operacionais da empresa para realização do show artístico, dentre outros fatores."

Gusttavo Lima teve um show contratado no valor de R$ 1,2 milhão pela prefeitura de Conceição do Mato Dentro (MG), a cerca de 164 km da capital Belo Horizonte. O contrato, assinado em 11 de abril, faz parte da programação de uma festividade na cidade e virou alvo de pedido de investigação no MPMG (Ministério Público de Minas Gerais).

Dias após a divulgação do valor pago pelo show, a prefeitura da cidade cancelou a apresentação e explicou que o motivo seria a tentativa de "guerra política e partidária que não tem nenhuma ligação com o município e nem tampouco com a tradicional festa" do Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos.

A apresentação de Lima na cidade de Magé (RJ) é outro exemplo dos valores envolvidos nos shows. O cantor deve receber R$ 1 milhão por uma apresentação na comemoração dos 457 anos da cidade da Baixada Fluminense.

O valor do cachê do sertanejo é dez vezes maior que todo o investimento programado pela prefeitura em atividades artísticas e culturais para o ano de 2022.

Como funciona a Lei Rouanet

A captação é feita por renúncia fiscal. Ou seja, é uma reorganização de imposto, que seria pago aos cofres públicos, mas é direcionado a produções artísticas.

Para pessoas físicas, o limite da dedução é de 6% do Imposto de Renda a pagar; para pessoas jurídicas, 4%.

Todo projeto cultural, de qualquer artista, produtor ou agente cultural brasileiro, pode se beneficiar da Lei Rouanet e se candidatar à captação de recursos de renúncia fiscal. As empresas é que escolhem os projetos em que querem investir, não o governo.

Cabe ao governo aprovar tecnicamente as propostas para captação de patrocínio, sem exercer qualquer juízo de valor acerca do projeto ou de seus proponentes. Apenas avalia se a proposta cumpre com os requisitos técnicos.