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'Continuo sonhando', disse Elza Soares em sua última entrevista ao UOL

De Splash, em São Paulo

20/01/2022 18h51

Elza Soares —que morreu hoje aos 91 anos— concedeu sua última entrevista ao UOL em junho de 2020, quando se preparava para fazer sua primeira e aguardada live, sensação do início da pandemia.

No papo com o jornalista Leonardo Rodrigues, a cantora falou sobre suas várias datas de nascimento, racismo, aposentadoria (o que nunca aconteceu), novos talentos da música e, principalmente, sobre seus sonhos, que nunca cessaram.

Leia a entrevista na íntegra:

Elza Soares tem várias datas de nascimento. E não adianta perguntar qual é a correta. Nem ela sabe. Nos documentos, nasceu há exatos 90 anos, em 23 de junho de 1930. Mas esse dia e esse mês se referem à emancipação da cantora, usada para poder se casar pela primeira vez, forçadamente, aos 13 anos de idade. A data correta seria 22 de julho de 1933... ou 1937. Não há registro.

O fato é que pouco importa. Elza —insira aqui a idade— é hoje um monumento da cultura brasileira. Símbolo da militância racial, das questões gênero e de um país rasgado pelo machismo e outras ranhuras sociais. E nunca é demais enaltecer suas histórias e sua importância na música brasileira, que nos últimos anos vem passando por um bem-vindo processo de redescoberta.

Nós conversamos por mensagem de áudio com ela, que se mostrou cética sobre diversos temas espinhentos. Do racismo estrutural à passagem do bastão de sua música. De uma eventual aposentadoria à mera possibilidade de sonhar. Sobre governo Bolsonaro e o estado do país, preferiu não responder. Não que não imaginemos o que viria.

Em meio ao pessimismo e incertezas advindas da pandemia, Elza "noventona" felizmente ainda é capaz de se dizer feliz. E nós ficamos com ela.

1. Como você se sente completando esse novo ciclo? Quais sonhos ainda espera realizar?

Realizar sonhos é muito difícil. Quando você está vivo, você não realiza. Você sonha. Continuo sonhando. Espero que o Brasil cresça um pouco mais. Que o brasileiro cresça um pouco mais. Para mim, pessoalmente, cada dia é um dia.

2. Há publicações que registram seu nascimento em 1930, 1933, 1937.... Em que você ano nasceu afinal?

Não sei explicar, não. Seu Avelino, meu pai, já morreu. E só ele saberia disso. Mais ninguém. Eu não sei

3. O assassinato do George Floyd nos EUA desencadeou a maior onda de protestos contra o racismo em 50 anos. Por que ainda não superamos essa chaga?

Eu acho que ainda vai demorar muito mais. A humanidade está caminhando muito devagar. Passo a passo. Esse caso [do George Floyd] é muito sério. Não é brincadeira. A gente está lidando com uma coisa muito doída. Me machuca muito ver isso. Mas eu sou uma só. Não posso fazer nada. Posso sentir e sofrer

4. Nos últimos anos, você lançou ótimos discos, abraçados pela crítica e jovens. Voltar a falar com eles era seu objetivo ou aconteceu naturalmente?

Naturalmente, não. Eu acho que a gente tem obrigação de falar com o jovem. Tem obrigação de evoluir. Temos obrigação de saber cada vez mais. Tudo que eu faço é vendo o que está acontecendo em volta de mim. Eu vejo essa juventude órfã. Vejo uma juventude que precisa de carinho, de amor. Que precisa de tudo. Eu estou colaborando com eles o bocadinho que posso

5. Um exemplo de como seus seguidores mudaram foi o público do seu show no Rock in Rio, um festival tradicionalmente branco. Havia muitas mulheres e mulheres negras, feministas. Você percebe essa mudança?

Percebo completamente. Eu vivo cantando e vigiando o que está acontecendo ao meu redor. Eu vi o público que esteve no Rock in Rio, e isso me deixou muito feliz

6. Este ano você foi tema de desfile da Mocidade no Rio. Como se sentiu desfilando agora como protagonista?

Eu me senti molhada de chuva. Fiquei feliz pelo desfile. Feliz pela consagração. E feliz pelo público. Só tenho a agradecer mais uma vez

7. Você enxerga alguém da nova geração que pode passar para frente o seu legado de música e ativismo? Iza? Ludmilla?

Não estou percebendo nada disso. Eu vejo a mocidade continuando no trabalho. Eu acho que eles sabem o caminho que estão caminhando. Eu não sei nada

8. O que a palavra "aposentadoria" representa para você?

Nem te respondo. Porque não tenho resposta. Acho que aposentar na música é uma loucura. Você canta até o fim. Eu quero que me deixem cantar até o fim, até o fim, até o fim, até o fim... (sussurra)

9. Você já revelou que costuma tomar sol nua no seu apartamento em Copacabana na quarentena. Como está sendo esse período para você?

Essa pandemia é algo inédito no mundo. E estamos atravessando um momento muito difícil. Difícil e cruel. Temos que ter consciência do que está acontecendo. E eu pego sol nua, sim. Estou pegando aqui na minha sala. E me sinto feliz