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OPINIÃO

Moderna, ecológica, mãezona: a Elis Regina que o Brasil precisa lembrar

Elis Regina: morte da cantora completa 40 anos - Acervo UH/Folhapress
Elis Regina: morte da cantora completa 40 anos Imagem: Acervo UH/Folhapress

Claudia Assef

Colaboração para Splash

19/01/2022 04h00

Hoje faz 40 anos que perdemos aquela que foi uma das maiores cantoras do Brasil: Elis Regina. Se estivesse viva, ela teria 77 anos e seria, com certeza, uma das figuras públicas mais seguidas nas redes sociais, não apenas pela potência e genialidade como cantora, mas também por características marcantes de sua personalidade, sempre muito à frente de seu tempo.

A força vocal de Elis Regina se apoiava em uma persona que transbordava energia e criatividade. Para usar um atributo da nossa era, Elis era uma mulher que não parava de parir conteúdo bom. As entrevistas que dava eram ricas em frases de efeito, em insights requintados e em preocupações que não estavam, nem de longe, na lista de inquietações da imensa maioria de seus colegas.

Talvez a grande vantagem de Elis fosse uma conexão muito íntima com a sua loucura. "Loucura é loucura, e é fundamental", dizia a mulher de gestos aristocráticos, de fala firme, cabelo curtíssimo e roupas elegantes e confortáveis. Uma autêntica "badass", que faria jus encabeçar o time das lacradoras e empoderadas dos dias de hoje. Fazia isso sem cair no padrão de artista "louca", que precisa demonstrar a vanguarda em roupas extravagantes ou penteado exótico. Não era sequer uma pessoa ligada a drogas — apesar de ter sido levada embora pela cocaína, no curto período de tempo em que fez uso dela.

Essa abertura intelectual e livre de preconceitos fez com que ela conseguisse ser uma grande intérprete de samba, rock, música sertaneja (com a fantástica "Romaria") e, claro, MPB, talvez a memória mais viva de Elis dentro do seu vasto legado para a música brasileira. Se você quer ir direto ao ponto, ouça Elis & Tom, álbum gravado nos EUA em 1974 pela dupla e que traz registros sublimes de "Águas de Março", "Triste", "Inútil Paisagem", entre outras joias, gravadas com perfeição. O disco, adorado por fãs de MPB pelo mundo todo, vai ganhar um documentário inédito em forma de longa-metragem a ser lançado ainda este ano pelo produtor Roberto de Oliveira, no canal Arte 1.

Amizade com Rita Lee e maternidade

Elis Regina e Rita Lee - Reprodução - Reprodução
As amigas Elis Regina e Rita Lee
Imagem: Reprodução

Igualmente conectada com sua loucura interior, Rita Lee foi uma grande amiga e parceira musical de Elis. As duas se conheciam de bastidores de festivais desde os anos 60, mas a amizade nasceu quando Elis fez questão de ir visitar Rita na cadeia — ela fora presa em 1976 acusada de porte de maconha. Depois de liberada da prisão, Elis encomendou músicas a Rita, uma delas criada em alusão ao apelido de Elis, "Pimentinha". As duas cantaram juntas "Doce de Pimenta", composta por Rita e Roberto de Carvalho, no especial de Elis gravado para a TV Bandeirantes em 1979.

Eu tinha 8 anos quando Elis faleceu e lembro do dia de sua morte com as TVs todas tocando "Alô, Alô, Marciano", um hit gigantesco na voz da cantora, escrito sob encomenda por Rita e Roberto. A conversa da terráquea com um ser extraterrestre é debochada, crítica, elevando a preocupação que certamente as duas tinham em comum com a imbecilidade do "high society".

Não à toa, Rita escreveu o prefácio do livro "Elis e Eu", escrito por João Marcello Bôscoli, filho mais velho da cantora. Lendo as memórias de João Marcello, que tinha 11 anos quando a mãe faleceu, fica clara a conexão de Rita e Elis num lugar em que poucos conectam artistas porra-louconas como elas: a maternidade. Assim como Rita, Elis foi uma mãe presente e carinhosa de três crianças: Maria Rita, Pedro Camargo e João Marcello.

O delicioso livro escrito por João Marcello, que chamava a mãe de sua 'superwoman superstar', demonstra o quanto Elis curtia o papel de progenitora. As lembranças do filho, que no livro conta tudo o que recorda sobre os 11 anos, 6 meses e 19 dias que conviveu com a mãe, revelam para quem a conheceu apenas pela TV a imagem terna de uma mulher extremamente carinhosa e cuidadosa com suas crias.

Ecológica

Em outra entrevista histórica, dada a Marília Gabriela em 1981, na qual ela aparece com Maria Rita pequenininha, Elis se mostra preocupada com desmatamentos e a falta de cuidado com o meio ambiente. "O fato de você não se preocupar com o desmatamento e achar que isso é uma frescura de intelectual, frescura de classe média, isso tá facilitando para o ladrão, entende", disse, enquanto a filha passeava pelo estúdio.

No dia 5 de janeiro de 1982, duas semanas antes de sua morte, Elis foi a convidada do programa "Jogo da Verdade", do jornalista Salomão Ésper, com a presença dos entrevistadores Zuza Homen de Melo e Maurício Kubrusly.

"Aos 16 anos, fui escalada pela Continental pra ser a Celly Campello deles, já que a Celly Campello era da Odeon. Era uma coisa que me deixava nervosa, não o fato de ser escalada pra ser a segunda Celly Campello, mas pelo fato de ter que ser uma segunda pessoa. É mania. Dizem que a perfeição é uma meta. Eu tava à cata dela. Continuo à cata, não sei se vou chegar lá algum dia, mas... eu queria morrer sendo eu. Eu não achava muita graça pintar num trabalho parasitando outra pessoa", disse, respondendo a uma pergunta do compositor Renato Teixeira, autor de "Romaria". E a aula não para.

Respondendo a Kubrusly sobre como era fazer um disco: "Hoje é mais difícil fazer um disco, porque a prepotência ganhou outros nomes, em inglês: marketing, merchandising... Não existe muita preocupação com criatividade. O que as gravadoras querem é o disco. Mas um disco sem um artista é uma bolacha preta com um furo dentro, não tem nem som".

Elis Regina - U. Dettmar/Folhapress - U. Dettmar/Folhapress
Elis Regina, em 1981
Imagem: U. Dettmar/Folhapress

Aos 36 anos, Elis estava no seu auge intelectual e artístico, uma cantora que atribuía a sua autonomia artística ao fato de ser mais "impertinente e petulante" do que as gravadoras — palavras dela própria. Sobre a sua geração de artistas, que inclui Rita Lee, Caetano, Milton, Gal, Bethânia, ela disse: "Desculpa a falta de modéstia, mas a nossa geração é o seguinte; feijoada mesmo, fomos nós que fizemos. Hoje tá confuso. O cavaleiro do ?após-calipse? tá solto. Já, já nasce outro de bigodinho, vocês vão ver, cuidado", profetizou. "Não sou boba de falar tudo o que eu penso, porque senão amanhã eu tô desempregada pra toda a vida. É muita loucura, e eu sou mais louca que a loucura que tá solta. Eu fiz o que eu pude, se desagradei alguém, lamento".

A julgar pelos 4 milhões de discos vendidos em seus 18 anos de carreira e pelos milhões de plays que sua obra continua ganhando (somente no Spotify são mais de 2 milhões de ouvintes por mês), Elis agradou (e agrada) muito mais do que desagradou. Sorte nossa é que sua obra é eterna e está aí para quem quiser descobrir.