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Gilead da vida real: as semelhanças entre o Talibã e 'Handmaid's Tale'

Elizabeth Moss em cena de "The Handmaid"s Tale" - Divulgação
Elizabeth Moss em cena de "The Handmaid's Tale" Imagem: Divulgação

Camila Rosa

Colaboração para o Uol, de São Paulo

21/08/2021 04h00

Quem assistiu a "The Handmaid's Tale" acreditando que seria apenas mais uma série de ficção científica e distópica não poderia imaginar que, em 2021, o universo opressivo da trama estrelada por Elizabeth Moss se pareceria tanto com a realidade devastadora enfrentada hoje pelos cidadãos do Afeganistão.

Taleban de volta ao poder no Afeganistão - Stringer/Reuters - Stringer/Reuters
Integrantes do Talibã fazem patrulha nas ruas de Herat
Imagem: Stringer/Reuters

No último dia 15, o grupo fundamentalista religioso Talibã retomou o poder no país, após quase 20 anos de ocupação dos Estados Unidos, e entrou no palácio presidencial na capital Cabul, deserto após a fuga do (agora ex) presidente Ashraf Ghani. São inúmeros os relatos e imagens de desespero dos civis, que já viveram sob o terror do Talibã anteriormente, entre 1996 e 2001, ano em que o ataque ao World Trade Center, em Nova York, precipitou o início da chamada Guerra ao Terror americana.

Mas o que isso tudo tem a ver com "Handmaid's Tale"? Na série, derivada do best-seller de 1985 "O Conto da Aia", da canadense Margareth Atwood (adaptada para a TV em 2017 pelo Hulu), conhecemos a República de Gilead, um novo país, teocrático, surgido os escombros dos Estados Unidos após um golpe de Estado. Mulheres perdem totalmente sua autonomia, há perseguição a LGBTQIA+s e nenhuma liberdade individual. A violência e o abuso do poder viram ferramentas de controle social. Qualquer semelhança com o regime Talibã, se algum dia já foi, hoje, infelizmente, não é mais mera coincidência. São muitas (e incômodas) as similaridades entre a série e a vida real:

Fundamentalismo religioso

Cena da terceira temporada de "The Handmaid's Tale" - Divulgação - Divulgação
Cena da terceira temporada de "The Handmaid's Tale"
Imagem: Divulgação

Em "The Handmaid's Tale", os Estados Unidos sofreram um golpe dos Filhos de Jacó, grupo fundamentalista religioso que interpreta o Velho Testamento da Bíblia como Constituição. A partir do livro sagrado, novas leis são criadas e aplicadas.

Já o Talibã também é conhecido e criticado por criar regras rígidas a partir de uma leitura inteiramente distorcida do Alcorão, o livro sagrado do Islã. Assim como na série, os "fiéis" se aproveitam dos livros sagrados para justificarem as atrocidades que fazem com a população.

Mulheres perdem todos os direitos

Cena de "The Handmaid's Tale" - Divulgação - Divulgação
Cena de "The Handmaid's Tale"
Imagem: Divulgação

Na série, mulheres que antes tinham total autonomia para trabalhar, estudar e viver livremente têm seus direitos retirados à força. É claro que essa mudança não é repentina. Uma ideia conservadora se infiltra ali, outra acolá. Aos poucos, a normalização de absurdos muda toda a realidade. Na primeira temporada, por exemplo, a ex-editora de livros June (Elizabeth Moss), relembra as intervenções dos Filhos de Jacó. Um dia, todas as mulheres são demitidas. Então, ela e sua amiga Moira (Samira Wiley) descobrem que precisam da autorização de algum homem até para fazer compras.

Absurdo? No Talibã, isso já ocorreu. As mulheres são proibidas de saírem de casa, a não ser que estejam acompanhadas por um mahran (parente do sexo masculino, como pai, irmão ou marido). Por isso, a volta dos Talibãs ao poder preocupa todo o mundo. A declaração do porta-voz do Talibã, Suhail Shaheen, de que "irá proteger o direito das mulheres" foi insuficiente, diante do histórico de brutal misoginia e cerceamento de direitos do grupo.

Interferência até nas roupas

The Handmaid's Tale - Hulu - Hulu
A adaptção para a TV de The Handmaid's Tale foi o maior sucesso do serviço de streaming Hulu e a série ganhou o prêmio Emmy de melhor drama do ano em 2017
Imagem: Hulu

Na república teocrática de "The Handmaid's Tale", as mulheres são obrigadas a usar uniformes para identificação de sua casta. As Esposas vestem azul; as Martas, que cuidam das tarefas domésticas, verde; e as Aias, responsáveis pela procriação, vermelho, enquanto as sádicas Tias, encarregadas da educação e do comportamento de todas as outras mulheres, vestem marrom.

No Talibã, a moda feminina também é regulada pelo governo. Mulheres só podem sair de burca, sob risco de ser espancadas ou apedrejadas. A vestimenta precisa cobrir todo o corpo, inclusive mãos, tornozelos e até o rosto. Minissaias e calças, que um dia foram comuns em Cabul, hoje são impensáveis no país.

Sem acesso à educação

Malala Yousafzai  - Brasil Escola - Brasil Escola
Malala Yousafzai é uma ativista paquistanesa que ganhou reconhecimento por lutar pelo direito das mulheres de estudarem.
Imagem: Brasil Escola

Na série, livros, computadores e celulares foram completamente banidos do país. O contato com outros universos não é permitido de forma alguma pelas mulheres — apenas os homens têm acesso a esses aparelhos. A pena para quem descumpre a regra é pesada e não poupa nem mesmo a influente Serena, esposa do comandante Fred (Joseph Fiennes), a quem June deve dar um filho.

No Talibã premissa é a mesma: mulheres que ousam estudar ou trabalhar podem pagar com a própria vida. A paquistanesa Malala Yousafzai tinha apenas 14 anos em 2012, quando foi baleada na cabeça por um militante do Talibã por defender o direito das mulheres estudarem. Ela sobreviveu e hoje é uma das figuras mais notórias pela luta do direito das mulheres e meninas a terem acesso à educação. Em 2014, Malala recebeu o prêmio Nobel da Paz em 2014.

Violência física

Elizabeth Moss em cena da série 'The Handmaid's tale' - Divlugação - Divlugação
Elizabeth Moss em cena da série 'The Handmaid's tale'
Imagem: Divlugação

Há quem diga que para assistir "The Handmaid's Tale" é preciso ter estômago. A rotina de estupros, tortura física e psicológica em Gilead é mostrada quase sem filtros. Pensar em sair desse sistema opressor é arriscar a própria vida e colocar em risco outras mulheres também. A aia Janine (Madeline Brewer) aprende isso da maneira mais cruel. Em uma das cenas mais fortes da série, ela é condenada à morte por apedrejamento por desobediência. Castigos deste tipo são comuns dentro do regime do Talibã.

Embora a autora do livro, Margareth Atwood, já tenha declarado em algumas entrevistas que sua história não é uma ficção científica, mas sim especulativa, ou seja, daquelas que servem para imaginarmos o que poderia acontecer no pior dos cenários, fica difícil não enxergar tantas similaridades entre a ficção e a vida real num momento como esse.