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Muita saudade, pouca máscara: um show de pagode na pandemia

Guilherme Lúcio da Rocha

De Splash, em São Paulo

26/07/2021 12h26Atualizada em 30/07/2021 14h30

"Saudade Arregaça". Esse era o nome do show do grupo Pixote, realizado na noite do último sábado (24). Uma das principais casas de show da cidade, o Tom Brasil, na zona sul de São Paulo, abrigava seu primeiro evento após o afrouxamento das restrições pela prefeitura por conta da pandemia do novo coronavírus.

São Paulo está na fase de transição, com a liberação de eventos com até 60% da capacidade do local e o encerramento das atividades às 23h. Segundo o último boletim da prefeitura, 6,9 milhões de pessoas já foram vacinadas, quase 80% da população com mais de 18 anos, o que reduziu o número de internações graves - a ocupação das UTIs hoje está em 44%.

É nesse contexto que os shows voltam a acontecer na cidade com o maior número de habitantes no Brasil.

Como será um evento desses com o "novo normal" imperando? Splash acompanhou tudo para entender o que podemos esperar da volta dos espetáculos na cidade.

Nostalgia

A reportagem chegou no local do show por volta das 18h, 1h antes da abertura da casa. Além dos funcionários de estacionamentos próximos e do próprio Tom Brasil, apenas a aposentada Vanice Aparecida Simeone, 69, estava pelas redondezas.

Vanice tem uma mini-van onde vende bebidas e cachorro quente em frente a casa de shows há oito anos.

A aposentada Vanice Aparecida vende hot dog em frente a casa de shows em SP - Guilherme Lucio da Rocha / UOL - Guilherme Lucio da Rocha / UOL
Imagem: Guilherme Lucio da Rocha / UOL

"Nós paramos em março de 2020 e foi um choque. Eu só trabalho aqui, nesse local. Precisei vender todos os mantimentos, tudo o que tinha aqui. Eu tenho minha aposentadoria e complemento a renda aqui. Estava muito apreensiva sobre essa volta", afirma a vendedora, que tomou a primeira dose da vacina.

Com o passar das horas, outros ambulantes chegavam e cumprimentavam a amiga, relembrando as dificuldades dos tempos de pandemia e compartilhando como cada um se virou do jeito que podia.

Agora, a esperança era de uma volta da agenda de espetáculos.

Ainda é tudo muito incerto, até para a gente. Não sabemos como o público vai se comportar, a única certeza é que as coisas mudaram.

Se antes da pandemia era comum o trânsito de carros e pessoas fazendo fila nos carrinhos de bebida e cachorro quente, a região próxima à casa noturna estava deserta até próximo das 19h. Não havia venda de ingressos no local e o público foi chegando bem aos poucos.

Antes de entrar no saguão da casa, havia um totem para aferição de temperatura e uso de álcool em gel. A entrada só era permitida com o uso de máscara —do lado de fora, o item vital não era usado por todos.

Splash presenciou um grupo chegando sem máscara e recebendo algumas unidades da organização do evento.

"Vocês acharam mesmo que iam entrar sem máscara?", disse o produtor. Parecia um sinal do que estava por vir.

O Tom Brasil tem 6.000 m2 de área interna. Em um show com pista, em que é permitido que as pessoas fiquem em pé, a capacidade da casa é de 4,1 mil pessoas. Já em eventos com mesas e cadeiras, como no caso do show do Pixote, o local comporta 2,5 mil pessoas sentadas.

Espaçamento entre as mesas foi respeitado durante o show - Guilherme Lucio da Rocha / UOL - Guilherme Lucio da Rocha / UOL
Imagem: Guilherme Lucio da Rocha / UOL

Para o show de sábado, a casa reduziu a capacidade para 40%. A distância entre as mesas era de 1,5 metro. Não conseguimos medir com exatidão, mas a impressão era de que o distanciamento foi seguido à risca.

O ingresso mais barato custava R$ 90. Cada mesa tinha espaço para duas ou quatro cadeiras, além de camarotes para seis pessoas. A recomendação era restringir as mesas ou camarotes a pessoas da mesma família ou convívio social.

Insegurança

Para cumprir a determinação do governo de fechamento da casa às 23h, o show começou às 21h10. Mesmo em um evento de pagode, chamou a atenção a disciplina do público em permanecer sentado. O público resistiu quase até o fim.

Antes do show, mesmo sem consumo, pessoas já estavam sem máscara - Guilherme Lucio da Rocha - Guilherme Lucio da Rocha
Imagem: Guilherme Lucio da Rocha

A disciplina não foi replicada no uso da máscara. O que parecia contrassenso antes se mostrou inviável na prática. Assim que passavam o saguão sentavam-se às mesas, boa parte do público abandonou o acessório. Em certo momento, olhei ao meu redor e tive a impressão de ser o único presente a seguir tão importante protocolo.

"Quando sentam-se às mesas, como há consumo, as pessoas podem retirar suas máscaras, como em qualquer bar e restaurante. Desta forma, prezando pela segurança de nosso público, tomamos cuidado redobrado, dando ainda mais distância entre as mesas do que os órgãos de saúde orientam", disse Christian Tedesco, vice-presidente do Grupo Tom Brasil.

Na terceira música, Dodô, vocalista do grupo, sugeriu para os presentes que não sabiam cantar as canções do Pixote que, pelo menos, movimentassem a boca para fingir que conheciam as composições.

Era a certeza que o advento da máscara estava no imaginário do passado.

A fiscalização também não era das mais acirradas. Antes de iniciar o show, um vídeo institucional foi mostrado nos telões para o público, detalhando o trabalho da casa em higienizar o amplo espaço. Faltou pedir para o público utilizar o item individual mais importante para a contenção do vírus em local fechado.

Após o show, Splash conversou com o infectologista e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia Wladimir Queiroz sobre os protocolos sanitários. Ele reforçou que o risco zero é uma utopia que deve ser buscada sempre.

A higienização de superfícies é importante, sim, mas o uso de máscara é imprescindível a todo o momento. Essas réguas de etiqueta, especialmente em ambientes fechados, ainda são muito importantes. O público não pode confundir flexibilização com liberou geral.

Wladimir Queiroz, infectologista

"Nós estamos vendo um decréscimo, especialmente nos casos graves, a vacinação é um grande passo. O risco zero, neste momento, é uma meta inatingível, mas temos que seguir as regras para tentar chegar o mais perto possível dessa meta".

O novo normal é uma realidade

O avanço da vacinação parece realmente ter gerado uma impressão de que a pandemia está próxima do fim —as variantes como a Delta, porém, indicam que a situação não é bem assim.

Para quem estava presente no Tom Brasil no sábado, o êxtase em poder cantar, a plenos pulmões, suas músicas preferidas, mesmo sem poder sambar como se não houvesse amanhã, era uma forma de relembrar tempos que não voltarão jamais. O novo normal já é uma realidade.

Conforme o show foi avançando e o consumo de álcool foi aumentando nas mesas, as pessoas foram perdendo ainda mais o cuidado com as regras sanitárias e gritando cada vez mais alto os sucessos do grupo de pagode. Até chegar a música que encerrou o espetáculo "Saudade Arregaça".

Foi nesse momento que quase todas as pessoas que estavam nas primeiras fileiras levantaram, cantaram, sambaram, aglomeraram na frente do palco. Enfim, fizeram a festa que todo show de pagode merece. Talvez não nos tempos atuais.

Por que agora?

Majoritariamente, a faixa etária do público ficava na casa dos 30 anos ou mais, portanto, dentro da idade de corte para vacina. Quem desejasse, já poderia ter tomado a primeira dose, segundo os parâmetros da prefeitura de São Paulo.

Era o caso do casal Wesley Venceslau, 37, e Sueli Mafra, 40. Fãs do Pixote, os dois dizem que nem se lembravam mais do último evento a que foram. A certeza era que aconteceu num momento de pré-pandemia. A segurança para sair de casa foi por conta das condições do local e da vacinação adiantada.

"As coisas estão evoluindo, a vacinação está avançando. Eu não tinha nenhuma confiança para sair de casa. Com a primeira dose, mesmo não estando 100% imunizado, senti que poderia sair, com máscara e álcool em gel, óbvio".

Ao final do show, os dois ainda passaram pelo carrinho da dona Vanice. E disseram que a experiência, na visão deles, foi ótima.