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ANÁLISE

Versátil, Nelson Sargento teve uma das carreiras mais inspiradas do samba

Nelson Sargento ao lado de Dudu Nobre durante o Carnaval de 2018 - Felipe Panfili/Camarote CarnaUOL RJ/N1
Nelson Sargento ao lado de Dudu Nobre durante o Carnaval de 2018 Imagem: Felipe Panfili/Camarote CarnaUOL RJ/N1

Anderson Baltar

Colaboração para Splash, do Rio

27/05/2021 11h35

Nelson Sargento foi um sambista versátil, inteligente, espirituoso e naturalmente antenado. Morto hoje, aos 96 anos, em decorrência de complicações da covid-19, chegou a ter um canal no YouTube e, ao longo do tempo, continuou atraindo fãs para a sua extensa obra, composta por mais de 400 músicas. Parceiro de bambas como Cartola, Carlos Cachaça, Zé Kéti e Paulinho da Viola, o apaixonado mangueirense e vascaíno construiu uma das mais longevas e produtivas carreiras da história do samba.

Nascido em 25 de julho de 1924, filho da empregada doméstica e lavadeira Rosa Maria da Conceição, Nelson foi criado no morro do Salgueiro, onde teve contato pela primeira vez com o samba, desfilando, com 10 anos de idade, na bateria da Azul e Branco —uma das três escolas que dariam origem, anos depois, ao Acadêmicos do Salgueiro.

Adolescente, com dificuldades após a morte do padrasto, Nelson e sua mãe foram morar no morro da Mangueira, mais precisamente na casa de seu padrinho, Alfredo Português, à época, um dos maiores compositores do morro e integrante da hoje extinta Unidos da Mangueira.

Nelson Sargento morre aos 96 anos

Com as andanças ao lado do padrinho, convivendo com bambas como Cartola, Nelson Cavaquinho e Geraldo Pereira, Nelson aprendeu a tocar violão e passou a compor suas primeiras canções. Com 18 anos, integrou-se à ala dos compositores da Estação Primeira de Mangueira, onde chegou a presidente de honra e desfilou ininterruptamente até 2020. No Carnaval de 2019, quando a verde e rosa conquistou seu último título, com um enredo que enfocava personagens esquecidos pelos livros de história, desfilou representando Zumbi dos Palmares.

O apelido que carregou praticamente a vida toda surgiu dos tempos de Exército, onde chegou à patente de sargento. Mas, com apenas quatro anos de caserna, Nelson pediu baixa e passou a cerrar fileiras em outro tipo de grupamento: o dos mais inspirados compositores da história do samba carioca. Em 1949 e 1950, com Português, emplacou seus primeiros sambas-enredos na verde e rosa. Já em 1955, com o reforço de Jamelão, compôs "Cântico à Natureza" (também conhecido como "Primavera"), até hoje considerado um dos mais belos sambas-enredos da Mangueira.

Integrou o seminal espetáculo "Rosa de Ouro", dirigido por Hermínio Bello de Carvalho e, ao lado de bambas como Zé Kéti, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho, formou o Voz do Morro, grupo que, nos anos 1960, desempenhou o fundamental papel de levar para o asfalto o samba criado nas favelas cariocas. Com alguns destes sambistas também participou do grupo Os Cinco Crioulos.

Em sua obra musical, ficaram eternizadas canções como "Ciúme Doentio" (em parceria com Cartola), "Encanto da Paisagem", "Deixa" e "Falso Amor Sincero", todas presentes nos repertórios das melhores rodas de samba. Mas, sem dúvida, "Agoniza, Mas Não Morre" é o seu maior sucesso. Constante no repertório de Beth Carvalho, é uma crítica ao processo de modernização das escolas de samba, que se transformaram em um espetáculo escravo da cronometragem. Na letra, um tom de desabafo impossível de ser ignorado por qualquer bamba: "Mudaram toda a sua estrutura/ Te impuseram outra cultura/ E você não percebeu".

Pintura, literatura e cinema

Afinado, carismático e dono de um jeito malandreado de cantar, manteve-se ativo ao longo dos últimos anos, com uma agenda constante de shows. Gravou cerca de 30 discos e fez um fã-clube fiel no Japão, onde chegou a realizar quatro turnês.

Polivalente, Nelson Sargento também desfilava seu talento pela pintura e pela literatura e chegou a atuar em filmes, como "Orfeu do Carnaval", de Cacá Diegues, "O Primeiro Dia", de Walter Salles e Daniela Thomas, e "É Simonal", de Domingos de Oliveira, além da minissérie "Presença de Anita", na Rede Globo. Em 1997, ganhou dois prêmios no Festival Rio Cine, como melhor ator e trilha sonora pelo documentário "Nelson Sargento na Mangueira", de Estevão Ciabatta.

Em seu último aniversário, Nelson protagonizou uma das cenas mais bonitas registradas no Rio de Janeiro durante a pandemia. Foi organizada uma roda de samba exatamente em frente a seu apartamento, na rua Maria Amália, na Tijuca. Da janela, comovido, Nelson participou e foi aplaudido por toda a vizinhança. Foi uma justa homenagem antes do suspiro derradeiro.