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Reprises de novelas devem avisar sobre comportamentos preconceituosos?

Taís Araújo e Sérgio Malheiros em "Da Cor do Pecado" - Reprodução
Taís Araújo e Sérgio Malheiros em "Da Cor do Pecado" Imagem: Reprodução

Guilherme Lucio da Rocha

De Splash, em São Paulo

26/05/2021 04h00

Se tem uma coisa que prende a atenção do brasileiro é a novela.

Segundo pesquisa do Kantar IBOPE Media de março de 2020, 99% dos brasileiros assistem TV e o que mais prende atenção e gera engajamento são os folhetins televisivos. Até por isso, as novelas também são responsáveis por promover debates sociais, alguns mais condizentes com os tempos modernos, outros nem tanto.

Recentemente, o Viva, canal da TV fechada que retransmite novelas da Globo, colocou um aviso aos telespectadores durante a reprise de "Da Cor do Pecado".

O texto diz:

Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada.

A novela foi transmitida originalmente em 2004, na TV Globo, e contou com a direção de João Emanuel Carneiro. A protagonista era Thaís Araújo, que interpretou a personagem Preta e viveu um romance com Paco, interpretado por Reynaldo Gianecchini. A personagem foi a primeira protagonista negra de uma novela da Rede Globo.

À época, a novela já sofreu críticas pelo título com teor racista, ligado à escravidão e o abuso de mulheres negras por senhores de engenho. Além da discussão racial, a novela também trata da homofobia sofrida pelo personagem Abelardo (Caio Blat), integrante da família Sardinha e rejeitado pelos irmãos.

Taís Araujo em "Da Cor do Pecado" - Divulgação/TV Globo - Divulgação/TV Globo
Taís Araujo em "Da Cor do Pecado"; personagem foi a primeira protagonista negra da Globo
Imagem: Divulgação/TV Globo

Em nota enviada à imprensa, o Canal Viva afirmou que a atitude de colocar o alerta é um "retrato da sociedade que evolui''.

"A partir de agora vamos fazer isso em toda a programação. Como relembramos ao final da novela, nossas obras reprisadas reproduzem costumes e comportamentos da época em que foram realizadas, um retrato da sociedade que evolui —e de uma Globo que evolui junto com ela", diz trecho do comunicado.

Splash conversou com especialistas em televisão para entender se esses alertas vieram para ficar e se ajudam na discussão social.

O papel das novelas

Por conta da penetração da TV aberta no país, as novelas têm um papel de fomentar discussões presentes na sociedade. Porém, como adaptar novelas antigas para tempos atuais?

Mauricio Stycer, colunista de Splash, acredita que as novelas podem desempenhar esse papel social, mas destaca a importância de se explicar comportamentos preconceituosos.

A mensagem precisa ser clara e didática, explicando por que tal comportamento é inadequado. Acho que o alerta, como fez o Canal Viva, pode ser importante na discussão da sociedade sobre temas como racismo e homofobia, desde que deixe o público ciente da problemática.

Mauricio Stycer

Para Splash, o Viva explicou que a mensagem utilizada será padrão e estendida a outras novelas e programas reprisados na programação.

Kelly Quirino, pesquisadora de relações raciais e comunicação da Universidade de Brasília (UnB), vê a iniciativa como um pequeno passo.

Acho que a mensagem é algo, mas dado o alcance das novelas no país, deveria ser ainda mais clara. Inclusive, pensando em outros quadros que reproduzem novelas antigas na TV aberta. Com o tamanho que a discussão racial e de gênero ganhou, é preciso discutir o que se fez de equivocado no passado.

Kelly Quirino

Excluir ou informar?

No caso do Viva, o canal decidiu por uma mensagem genérica, que não aborda um tema específico. Em nota, a explicação foi que a mensagem também será exibida em outras novelas de época.

Outras novelas já foram alvos de polêmicas —inclusive com pedido para exclusão de cenas. Foi o caso de "Pátria Minha", exibida em 1994 também pela TV Globo. Uma cena envolvendo os personagens Kennedy (Alexandre Moreno) e seu patrão Raul Pelegrini (Tarcísio Meira) foi alvo de um processo do movimento negro que pediu a exclusão do trecho com conotação racista.

Kennedy arrumava as roupas do patrão, quando foi abordado por ele, questionando o que estava fazendo próximo ao cofre. "O que você está fazendo, seu negro safado?", pergunta Raul. Na sequência, após o empregado tentar justificar, o personagem interpretado por Tarcísio Meira o chama de "negro insolente e diz: "Vocês [negros], quando não sujam na entrada, sujam na saída".

Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro "A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil", é contra a exclusão de cenas em novelas.

Para que não repitamos comportamentos já arraigados na memória histórica e coletiva e que se misturam com a memória pessoal, do presente, urge que criemos os mecanismos para escrevermos um novo presente. E não simplesmente apagar o passado. Como a vida não é suficiente, a arte tem exatamente esse papel: o de promover o debate social e iluminar caminhos mais saudáveis para a humanidade.

Mauro Alencar

Kelly reforça a ideia e diz que, por mais que a cena seja evidentemente preconceituosa, não se deve censurar cenas do passado.

Existe essa discussão também em outros pontos, como nas obras de Monteiro Lobato, que é racista. Na minha visão, é necessário contextualizar com uma advertência. O racismo existe e não tem como apagar.

Kelly Quirino

Para Splash, o canal Viva afirmou que nenhuma das produções exibidas terão cenas originais retiradas.

O papel das novelas atuais

Nas novelas atuais, as discussões sobre o impacto nas discussões sociais se mantém. Na última novela das 21h da TV Globo, "Amor de Mãe", um dos debates foi sobre o excesso de carga emocional sobre a personagem Camila, interpretada por Jéssica Ellen.

Jéssica Ellen interpreta a professora de História Camila em Amor de Mãe - João Cotta/Globo - João Cotta/Globo
Jéssica Ellen interpreta a professora de História Camila em Amor de Mãe
Imagem: João Cotta/Globo

Kelly acredita que Camila representa o sonho de muitas jovens negras, mas também acha válido a discussão sobre como queremos ver o negro na TV.

As discussões evoluíram. Precisamos abordar as formas com que os negros são representados. A Camilla, uma mulher negra, formada, é espelho para muitas mulheres. No entanto, essa história sofrida, de uma mulher forte e guerreira é um estigma que está enraizado na sociedade. Por que a mulher negra não pode ter uma família como aquelas de comercial de margarina?

Kelly Quirino

Outro ponto destacado por Stycer e por Kelly é que as críticas às novelas não começaram agora. No caso de "Da Cor do Pecado", o movimento negro já tinha apontado a problemática do título da novela e da relação com a sua protagonista.

Faltou autocrítica para a Globo, de entender o que estavam debatendo à época. Hoje, não existe mais espaço para se reforçar estereótipos racistas, machistas e homofóbicos nas novelas de forma acrítica.

Mauricio Stycer