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Racismo, assédio e bifobia: militância no BBB enriquece ou atrasa o debate?

Camilla de Lucas fez questão de separar os assunto: militância é uma coisa, afinidade é outra - Reprodução/Globoplay
Camilla de Lucas fez questão de separar os assunto: militância é uma coisa, afinidade é outra Imagem: Reprodução/Globoplay

Débora Miranda

De Splash, em São Paulo

22/02/2021 04h00

"Vou pedir para sair." A frase mais dita neste "BBB" mostra que o dia a dia de confinamento está sendo barra para todo o mundo. É difícil saber exatamente onde começou e o que despertou tanta tensão entre os participantes desta 21ª edição, mas em algum lugar entre a vontade de se consagrar e o medo do cancelamento se instaurou a estratégia: militar é preciso.

O fato de este ser o "BBB" com a maior participação de negros da história foi celebrado e criou no público uma expectativa de poder acompanhar discussões importantes e relevantes entre uma prova de resistência e uma briga por comida.

Mas sabe aquilo que dizem sobre expectativas? Pois é, no "BBB", como na maior parte das situações da vida real, também deu ruim.

"Reality show não é um tipo de programa que incentiva a reflexão. É entretenimento. Ele pode ser um espaço para as pessoas descobrirem certas questões e observarem certos temas, mas o formato do programa e o seu propósito não favorecem o debate nem o conhecimento", Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama.

É uma competição, não é um ambiente criado para propiciar o entendimento, a cooperação. As pessoas estão lá para se confrontar.

E o confronto, neste "BBB 21", começou logo no início do programa, despertando discussão em torno de questões raciais. Racismo e colorismo —quando Nego Di afirmou que Gil não era negro, por ter a pele mais clara— entraram em pauta. Enfurecida, Karol Conká falou do estereótipo da mulher negra raivosa. Para além dos muros do "BBB", prevalecia ainda o sentimento de inconformismo com a falta de acolhimento a Lucas —também negro.

Durante o último fim de semana, Camilla de Lucas e Karol Conká brigaram. A cantora acusou: "Você queria isso, disputa entre duas mulheres pretas". Camilla disparou:

Eu não tenho a obrigação de ter afinidade com você porque somos mulheres pretas.

Pessoas diferentes, pensamentos diferentes

BBB 21: Projota comenta atitudes de Karol Conká - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
O cantor Projota
Imagem: Reprodução/Globoplay

Para a rapper Stella Yeshua, as diferenças demonstradas entre os competidores no "BBB" são "uma constatação de que as pessoas negras não são todas iguais, como a sociedade espera". "É por causa de pensamentos assim que tantos de nós são presos e mortos no lugar de outras pessoas, são confundidos. Quando visualizaram as pessoas negras no 'BBB', acharam que todas pensariam igual. É isso que acham de nós. E não é assim. Pessoas diferentes, pensamentos diferentes."

Caio César, professor e criador de conteúdo, segue a mesma linha de Stella.

Existe uma questão muito comum de que nós, pessoas negras, não temos ainda uma individualidade. Então, tudo o que a Karol fala, ou o Projota, ou uma outra pessoa preta lá de dentro, é visto como uma fala de todos nós.

"Por isso vejo tanta gente fazendo questão de ir contra esses posicionamentos. Para mostrar que os pretos não são todos iguais, as pessoas têm opiniões das mais diversas."

Se a diversidade importa, o conteúdo também. E a percepção que prevalece é de que o recado da militância brotherística não está sendo passado da melhor forma. Em especial, há críticas sobre o excesso e a banalização de discurso racializado. As colocações de Lumena, por exemplo, acabaram virando piada, mesmo quando se referem a temas complexos.

"Por causa do racismo estrutural, nosso modo de pensar o mundo, a sociedade e as relações está racializado num nível que a gente sequer é capaz de perceber. Então, quando a pessoa começa a descobrir que o mundo está estruturado a partir da categoria de raça, ela quer entender quais espaços e situações estão mais impregnados disso. E é difícil, porque não tem um carimbo nas coisas. Mas eu diria que a gente está numa situação melhor, mesmo com eventuais erros, porque nossa situação anterior era fazer disso uma não-questão", afirma Caldas.

Stella concorda. "São temas que, por muito tempo, foram velados e que agora estão sendo falados. É uma evolução, significa que o assunto está sendo percebido. Que gerou um incômodo e que por isso entrou em debate."

Afeto como estratégia?

Atacado pelos colegas, excluído e solitário, Lucas Penteado cometeu erros dentro do "BBB", não conseguiu contornar a situação e, abalado, acabou de fato pedindo para sair. Sua vivência na casa, além da questão racial, envolveu discussões de abuso psicológico e bifobia —atitude de discriminação contra a bissexualidade.

Na madrugada antes de deixar a casa, ele beijou Gilberto e se disse bissexual. Foi imediatamente acusado de estar usando o afeto por outro homem como estratégia.

29 Foto beijo Lucas e Gil - Reprodução/ TV Globo - Reprodução/ TV Globo
Lucas e Gil se beijam
Imagem: Reprodução/ TV Globo

"Nesse caso, ficou clara a forma discriminatória com que o brasileiro ainda trata a sexualidade das pessoas quando ela é explícita. Quando você expressa seus desejos afetivos ou sexuais por alguém, seja no 'BBB', seja em qualquer espaço, bate na sociedade de maneira que gera em torno disso uma polêmica", afirma Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

Ela destaca que é importante a visibilidade que a TV vem dando a esses temas.

Para o bem ou para o mal, esse debate que se estabelece no 'BBB', nesta edição que está em ebulição, favorece, sim, a luta aqui fora. Mas não interfere.

"O que importa é a visibilidade que essa população ganha. As pessoas ficam suscetíveis ao que a TV, a rede social e a internet mostram. Existe bissexual desde que mundo é mundo e, no próprio movimento LGBT+, há uma invisibilidade desse tema. Quando aparece no 'BBB', começa a discussão. Como aconteceu quando Ariadna [mulher trans que participou do 'BBB 11'] estava lá. Ela entrou, causou, saiu, e o assunto se apagou. Por isso digo que não é necessariamente algo que acrescente", afirma Keila, lembrando de outro exemplo: a novela "A Força do Querer" (Globo), que está sendo reprisada e conta a história de transição do personagem Ivan (Carol Duarte).

Homem pode ser assediado?

A insinuação de Nego Di de que se masturbaria caso se deitasse ao lado de Carla Diaz levantou a discussão de assédio. O humorista afirmou: "Não quis deitar do lado da mina. Cê é louco. Com a flauta... [referência ao seu pênis]. Tira a flauta do case". Ao dizer que tiraria "a flauta do case", o comediante quis dizer que tiraria o pênis para fora da calça.

Karol e Arcrebiano cochilam na rede - Reprodução / Globoplay - Reprodução / Globoplay
Karol e Arcrebiano cochilam na rede
Imagem: Reprodução / Globoplay

Os telespectadores do programa —e mesmo quem só acompanha via redes sociais— ferveram em indignação, naturalmente. Mas o debate esquentou mesmo quando Karol se aproximou de Arcrebiano, e os dois ficaram. A insistência da cantora diante da reticência do modelo fez surgir o questionamento: teria ele sido assediado por ela?

"Esse assunto é sensível dentro do debate de masculinidade", afirma Caio César, que estuda o assunto e promove conversas sobre o tema.

Fiquei feliz que a maioria das pessoas reconheceu que de fato ela assediou ele. Mas vi muita gente falando também que ele, por ser muito mais forte do que ela, poderia dizer não. A ideia de que o homem sempre quer ajuda a silenciar esse tema.

Muito foi falado sobre a relação de poder entre Karol e Arcrebiano —tão recorrente em casos de assédio—, por ela ser uma cantora conhecida, popular e influente dentro da casa. Mas Caio afirma que a personalidade de cada um pesa muito nessa hora.

"Existem pessoas que são insistentes mesmo, que vão querer forçar. E, muitas vezes, o outro não sabe como dizer não e não consegue se afastar."

Prontos para perdoar?

Nesse grande jogo da discórdia chamado "BBB", a certeza é uma só: ninguém passará pelo confinamento sem tretas nem reflexões. Ninguém mesmo!

Essa edição do 'Big Brother' teve o poder de humanizar todos os corpos, e isso é muito positivo. Não tem preto, não tem branco. São corpos humanizados. O que vale ali dentro é o pensamento pessoal - destaca a rapper Stella.

"Outro ponto importante é sobre o pós programa", destaca ela. "Estamos falando de vidas. O ódio tem imperado, e os participantes precisarão de novas chances. O que vai acontecer com eles quando saírem da casa? Será que as pessoas estão prontas para perdoar? Acredito muito no debate, na regeneração de pensamento. Acredito que possa haver uma mudança através do diálogo depois que saírem daquele lugar. Mas a sociedade precisa perdoar e mudar, assim como ela espera que as pessoas que estão no programa façam."