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Thiago Stivaletti

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Enquanto o cinema começa a encarar o aborto, a TV finge que ele nem existe

Klara Castanho - Instagram/@klarafgcastanho
Klara Castanho Imagem: Instagram/@klarafgcastanho

Colunista do UOL

01/07/2022 04h00

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Comecei a escrever esta coluna pensando em assuntos mais leves. Mas o tema se impõe nestes dias: é preciso falar do aborto e do direito das mulheres a ele. Numa conjunção astral, quatro notícias lamentáveis nos atacaram nos últimos dias.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte suspendeu o direito constitucional ao aborto, num retrocesso de quase 50 anos. No Brasil, uma juíza e uma promotora tentaram induzir uma menina de 11 anos vítima de estupro (caso previsto em lei) a desistir do procedimento.

A atriz Klara Castanho, 21 anos, teve sua vida exposta e julgada ao ter optado por dar seu filho, resultado de um estupro, para adoção. E esta semana, uma cartilha do Ministério da Saúde do pior governo de todos os tempos diz com todas as letras que "aborto é sempre crime", ignorando o que é previsto na própria lei (aborto legal em caso de estupro e risco de vida para a mãe).

Me parece que, tanto aqui como nos EUA, a falta de discussão sobre o aborto é um dos motivos maiores para a questão retroceder tanto. E a cultura só reflete essa negação. Se a gente lembra de filmes mais antigos, os exemplos são poucos e escabrosos. Leitores com mais de 40 vão se lembrar de "O Último Americano Virgem" (1982), que passava bastante no SBT.

Esse filme me marcou porque começava como uma comédia erótica adolescente, uma espécie de "American Pie" dos anos 80. Começa com muita zoeira em torno do protagonista virgem, Gary, até que ele se apaixona por Karen, a linda da escola. Esta, por sua vez, se apaixona pelo cara mais gato do colégio, um cafajeste que a engravida e a deixa na mão.

Apaixonado, Gary ajuda Karen a pagar um aborto clandestino - e de repente os roteiristas decidiram virar o leme e fazer da comédia erótica um drama adulto. O final é perturbador: na última cena, quando Gary acha que finalmente conquistou Karen, ele a encontra beijando Rick de novo, perdoando o bonitão que a engravidou. Uma moral bem machista, do tipo "não confie nas mulheres".

Um outro exemplo bem mais bacana está num dos maiores filmes cults dos anos 80, "Dirty Dancing". Apaixonada por Johnny (Patrick Swayze), Baby (Jennifer Grey) decide ajudar a parceira de dança dele, Penny (Cynthia Rodes), a fazer um aborto, conseguindo um dinheiro com seu pai sem falar pra que era. Um raro exemplo de sororidade que talvez só tenha acontecido porque o roteiro desse hoje clássico foi escrito por uma mulher, Eleanor Bergstein.

No cinema recente, volta e meia algum filme enfrenta a questão de forma corajosa. O último exemplo é o francês "O Acontecimento", em cartaz no Festival Varilux, que estreia nos cinemas no próximo dia 7. Leão de Ouro no último Festival de Veneza, o filme é baseado num romance autobiográfico que virou best-seller na França.

Annie Ernaux engravidou sem querer nos anos 60 e enfrentou todos os obstáculos possíveis para interromper sua gestação. Sem coragem para contar da gravidez à mãe, uma mulher de criação humilde, procurou médicos que não só se recusaram a ajudá-la como mentiram sobre os remédios que poderiam facilitar a interrupção.

Em resumo, o mesmo mundo de trevas que vivemos até hoje: homens se arrogando o direito de decidir sobre o corpo da mulher, obrigando-a a se tornar mãe contra a vontade. "O Acontecimento" é um dos grandes filmes do ano, e merece ser visto na tela grande.

Se o cinema enfrenta vez ou outra a questão, o mesmo não se pode dizer da TV. Alguém se lembra de histórias de aborto decidido (e não espontâneo) nas novelas da Globo? Os exemplos são raros, mas significativos. Em 1980, uma novela das seis, "As Três Marias", que marcou a estreia de Maitê Proença na TV, trazia logo no início uma personagem, Teresa (Kátia d'Ângelo), que engravidava de um homem casado e decidia fazer um aborto.

A cirurgia termina mal, e logo descobrimos que o próprio cirurgião ajudou a matá-la, num crime comandado pela esposa do pai da criança (!). Resumindo: a decisão do aborto ficava totalmente associada a um crime maior. Outras menções a aborto apareceram vagamente em novelas como "Pátria Minha", sempre associadas a mulheres de caráter duvidoso.

O maior exemplo recente em novelas, acredite, vem da Record - e não é nada bacana. Em "Topíssima" (2019), a mocinha Jandira (Brenda Sabryna) é enganada por um rapaz que diz ser rico mas se revela pobre e termina a relação. Grávida, ela decide realizar um aborto.

Deprimente, a cena é uma cartilha parecida com a do Ministério da Saúde, feita para convencer de que o aborto é sempre a decisão errada. Moça de classe média, ela vai fazer a cirurgia numa clínica de bom padrão. Assustada, chorando, vê o médico errar seu nome e a enfermeira dizer que há mais cinco mulheres "marcadas pra mais tarde".

Comentário do médico: "essas mulheres também parecem coelho! Ô gente pra engravidar!". Sedada, Jandira têm lembranças do seu amor frustrado, sofre uma hemorragia e morre agarrada a sua boneca de pano, no pior estilo "inocência perdida".

Não é difícil entender por que a TV aberta evita o assunto a todo custo. Num país polarizado como o nosso, de lutas diárias da esquerda contra a extrema direita, dos valores mais liberais contra o ultraconservadorismo cristão, uma personagem que decidisse abortar numa novela possivelmente ia motivar campanhas de boicote à emissora.

Mas essa personagem poderia ajudar a "botar pra fora" os bons e maus julgamentos que uma jovem como Klara Castanho teve que enfrentar na vida real. É preciso ver mais o aborto em todas as telas, para lembrar sempre que ele é feito em condições precárias, botando em risco principalmente a vida das mulheres mais pobres. Fingir que o problema não existe só alimenta o obscurantismo e a ignorância de quem vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal.