Como 'A Longa Marcha' mostra violência e diversão como origem do fascismo
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Violência como entretenimento. Medo como controle. Pão e circo. Os gladiadores em combate nas arenas romanas já denunciavam não só o efeito sedutor dessa combinação ante o público que clamava por sangue, como também a mão do Estado ao usar essa euforia para manter a massa submissa. Se ao longo dos anos a realidade criou uma ilusão de civilidade, a ficção tratou de expor a ferida como parte essencial do tecido cultural.
Stephen King mal havia entrado na Universidade do Maine quando traduziu essa visão em palavras com "A Longa Marcha", escrito oito anos antes de ele publicar seu primeiro livro, "Carrie", em 1974. O texto, pessimista e sombrio, refletia a forma como King enxergava seu país, então mergulhado até o pescoço no fiasco da Guerra do Vietnã, como uma terra em falência moral, que apelava à exposição do sofrimento como muleta para sustentar o que sobrava do aparato estatal.
A trama, transformada agora em filme pelo diretor Francis Lawrence ("Constantine", "Eu Sou a Lenda"), concentra-se em uma centena de jovens que, em um futuro distópico, comprometem-se a uma marcha irrefreável, no asfalto quente e sob o Sol escaldante, por um prêmio utópico. Sob a mira de soldados do governo, eles não podem diminuir o passo, parar, descansar ou dormir - a pena para uma infração é a morte. Sem linha de chegada, o último sobrevivente pode reclamar sua recompensa.

"Para contar essa história a violência é necessária", conta Cooper Hoffman, que assume o papel de Ray Garraty, um dos jovens a enfrentar a caminhada. Após testemunhar a morte do pai, e buscando garantir seu futuro e o de sua mãe (Judy Greer), ele se compromete com a marcha, transmitida a todo país com a desculpa de representar "esperança e resiliência". "Precisamos da violência para entender a brutalidade de tudo aquilo", continua. "Não mostrar as consequências de quebrar as regras não teria o mesmo impacto."
A premissa não é estranha à cultura pop. De "Rollerball" a "Round 6", passando por "Corrida da Morte - Ano 2000", "Gamer" e "Jogos Vorazes", a ideia de somar entretenimento para as massas com violência e morte serve como alegoria para o estado das coisas - e ganha urgência quando a democracia parece se esfarelar no país mais poderoso do mundo. O próprio Stephen King retomou o tema no começo dos anos 1980 com "The Running Man", adaptado como a pérola cult "O Sobrevivente", Arnold Schwarzenegger à frente, que ganha ainda este ano uma nova versão assinada por Edgar Wright.
"A adaptação da obra de King é fiel, uma trama sombria que prende a atenção", aponta Mark Hamill, que em "A Longa Marcha" interpreta o Major, responsável por conduzir a caminhada e por comandar os soldados que mantém as regras do jogo rígidas. "Mas o coração da obra são os jovens caminhantes", continua. "A história é sobre o que eles enfrentam, como se relacionam e como sobrevivem."

A obra de Stephen King é transportada dos livros para o cinema (e para a TV) desde "Carrie, a Estranha", que estreou como filme dois anos depois de tomar as livrarias. Nestas quase cinco décadas, as adaptações de seu trabalho foram do sofrível ("Chamas da Vingança", "O Apanhador de Sonhos") ao sublime ("O Iluminado", "Louca Obsessão"), dando origem a um verdadeiro subgênero que hoje já soma mais de cinco dúzias de produções.
Em um ano particularmente prolífico para a marca Stephen King fora do papel, "A Longa Marcha" repousa confortavelmente como uma das melhores interpretações de suas ideias em outra mídia. Francis Lawrence, que traz no currículo quatro filmes da série "Jogos Vorazes" (com o quinto a caminho), equilibrou perfeitamente o terror de um estado totalitário com a camaradagem de jovens ante uma situação irreversível.
Embora a trama acompanhe a caminhada, com um ou outro flashback inserido para contexto, o diretor injeta dose generosa de personalidade a cada personagem, humanizando rostos anônimos para criar empatia. Funciona: "A Longa Marcha" emociona como drama sobre a condição humana e empolga como thriller eletrizante. É uma combinação poderosa, sufocante e surpreendentemente terna.

"As filmagens foram exaustivas, caminhávamos cerca de 80 quilômetros por dia sob o Sol, no asfalto", lembra Hoffman. Como compromisso de mostrar aos atores em tempo real que ponto da caminhada eles se encontravam, o diretor optou por rodar em ordem cronológica. "Essa decisão de Francis teve ainda outro efeito", explica o ator. "Quando um personagem morria, era também o último dia daquele ator no set, então o perdíamos no filme e também em nosso círculo de amigos."
"Acho que todo mundo queria sair de Winnipeg (cidade canadense onde o filme foi rodado) quando terminava sua parte, o calor era escaldante e geralmente a filmagem era no meio do nada", continua Hoffman. "Era triste deixar o set mas também era meio que um alívio." Ao longo das semanas de trabalho, contudo, o grupo permaneceu unido, jantando juntos ao fim de cada diária. O único excluído da confraternização era, curiosamente, Mark Hamill.
"Mark foi meio que exilado dos jantares", diverte-se Cooper. "Mas a responsabilidade disso é minha." O ator confidenciou a Francis Lawrence ser um grande fã do intérprete de Luke Skywalker, e que provavelmente fosse melhor não conhecê-lo porque ele sabia que ia simpatizar com o ídolo. "Cooper tinha medo de gostar de mim, e eu entendi", completa Hamill. "Cada um tem seu processo de composição de personagem, então foi uma escolha inteligente, Não conversei com ele ate o fim das filmagens."

Quando Stephen King finalmente publicou "A Longa Marcha", ele usou o pseudônimo Richard Bachman - criado por sua incessante necessidade de escrever e pelo temor da editora em saturar o mercado com sua "marca". Assim como "O Sobrevivente", ele aborda o tema da humanidade representada em um ambiente cruel, uma disputa mortal criada para o entretenimento. Recuperar estas histórias agora, quando o mundo parece se despir da civilidade para assumir um viés autoritário, explica parte de seu fascínio.
"Temos um lado meio doentio porque de certa forma gostamos de ver pessoas sofrendo", teoriza Hoffman. "É o motivo pelo qual assistimos a esportes, para ver até onde o ser humano está disposto a ver o resultado de seu esforço", continua. "São pessoas sendo testadas até o limite, descobrindo até onde eles suportam ser abusados fisicamente, mentalmente e emocionalmente."
Mark Hamill, por sua vez, tinha preocupação genuína de como a violência seria retratada. "Tenho de dar crédito a Francis Lawrence, porque tivemos uma longa conversa antes de me comprometer", lembra. "Ele faz com que a primeira cena seja verdadeiramente terrível, ficamos com ela em mente, o que permite que as outras não sejam tão explícitas." Mark lembra de ter ficado perturbado com a premissa e a violência, mas logo percebeu que "A Longa Marcha" era sobre o espírito humano de sobrevivência e camaradagem.
O ator derrete-se pelo elenco escolhido para representar os jovens em uma caminhada árdua enquanto ele "fazia a jornada em meu jipe, sob um guarda-sol". "Eu nem estive tanto com eles no set", ressalta. "Entre os personagens eu sou o antagonista, sempre à distância, represento o Estado que é o verdadeiro vilão." Um vilão, diga-se, que não se furta em matar de forma brutal e cruel qualquer um que não siga suas regras. "Tudo isso é uma distração", conclui Hamill. "O foco é a humanidade. A violência não é glorificada". De minha parte, sinto-me o adulto na sala por ter conversado com Mark Hamill e não ter mencionado "Star Wars" nenhuma vez.






























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