'Mad Max: Estrada da Fúria': 10 anos de uma jornada cinética sem paralelos
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A única derrota sofrida por "Mad Max: Estrada da Fúria", que completa 10 anos de sangue e fogo, foi justamente em seu fim de semana de estreia nos cinemas gringos. A obra-prima de George Miller expandiu o universo de seu herói pós apocalíptico de forma exponencial, mas perdeu o pódio das bilheterias para "A Escolha Perfeita 2", comédia musical tilelê com Anna Kendrick. Veja só.
Até aí, não é exagero dizer que a mera existência de "Estrada da Fúria" já era um milagre. Antes de as câmeras finalmente rodarem no deserto da Namíbia, "Estrada da Fúria" existia como uma ideia impossível incrustada na mente de George Miller. O cineasta havia encerrado a jornada de Max Rockatansky, policial transformado em guerreiro apocalíptico, após três filmes encabeçados por Mel Gibson entre 1979 e 1985.
O mundo, contudo, caminhava a passos largos para uma crise civilizatória impulsionada por seu irrefreável declínio climático, político e econômico. De repente, o futuro distópico imaginado por Miller, embora posicionado confortavelmente na seara da ficção, saltava de impossível para, digamos, meramente improvável. Refletir sobre tais questões sob o prisma do espetáculo de ação não parecia má ideia.
Daí começaram os revezes. A produção, agendada para 2003 no deserto da Austrália, foi adiada após os ataques do 11 de setembro dois anos antes, que redesenhou as fronteiras e fragmentou a logística das filmagens. O projeto ficou dormente até 2010, mas quando tudo parecia seguir o cronograma, a natureza decidiu banhar o deserto com uma temporada de chuvas torrenciais, fazendo da aridez da paisagem uma savana florida. No ano seguinte, "Estrada da Fúria" foi finalmente realocado para a Namíbia.

Tudo em "Mad Max: Estrada da Fúria" é superlativo - inclusive seus bastidores. Isolados no deserto, equipe e elenco tiveram seus limites testados. A rotina de trabalho de Tom Hardy, que assumiu o papel de Max, entrou em colisão com a disciplina de Charlize Theron, escolhida como a coprotagonista Furiosa. Imagens das filmagens, com Miller orquestrando o caos de veículos mastodônticos digladiando-se no deserto, deixaram a indústria curiosa e apreensiva em iguais proporções.
A desconfiança deu lugar ao deslumbre quando o filme foi exibido durante o Festival de Cannes, sensação que não se evaporou em sua posterior carreira nos cinemas e que segue firme mesmo após uma década. Essa longevidade faz sentido não somente porque "Estrada da Fúria" redesenhou a escala do cinema de ação de forma irreversível, mas pela perfeição com que o filme costura suas ideias e sutilezas narrativas neste fluxo cinético.
Não é por acaso que nenhum cineasta nos últimos 10 anos arriscou repetir seu escopo, com o cinema de ação atual apontando basicamente dois caminhos distintos. De um lado, os espetáculos grandiosos orquestrados por Tom Cruise, notadamente em seus "Missão: Impossível". No espectro oposto, séries como "John Wick" e "Resgate" valorizam a coreografia de ação no estilo "mano a mano", com diretores que, antes, aprenderam a contar histórias como dublês.
O resto, de super-heróis a fantasias indianas e "Velozes e Furiosos", é desenho animado. Não é uma crítica, veja bem: "Homem-Aranha no Aranhaverso" me causou vertigem, e a experiência coletiva de "Vingadores: Ultimato" foi catártica! A regra, infelizmente, são espetáculos seguros, sem tensão, sem deslumbre. Para a surpresa de zero pessoa, esse equilíbrio de domínio narrativo e energia vibrante de "Max" só ressurgiu em "Furiosa", que o próprio Miller lançou em 2024.

Nestes 10 anos desde o lançamento de "Mad Max: Estrada da Fúria", o mundo foi convulsionado de forma violenta. Enfrentamos uma pandemia global - e seus negacionistas. Os EUA ejetaram um lunático da Casa Branca para, depois de 4 anos, reconduzir o sujeito, que claramente perdeu a bolinha do apito, de volta ao poder. Em nosso quintal, escapamos raspando de um golpe de estado, mas ainda sentimos os reflexos dos herdeiros de quem só sabe cuspir ódio.
Neste cenário, a questão central de "Estrada da Fúria" - "Quem quebrou o mundo?" - ganhou contornos premonitórios. Foi o que eu escrevi quando o filme completou 5 anos: "A trama é de simplicidade franciscana: Max precisa sair do ponto A, foge para o ponto B e precisa retornar, modificado pela experiência, ao lugar de partida. Nas entrelinhas, temas ainda mais relevantes ao mundo de hoje, como empoderamento feminino, choque brutal de classes sociais e colapso ambiental. Fica a lição: o mundo vai para o vinagre por culpa unicamente nossa".
Ao rever "Estrada da Fúria" para escrever este texto (como se precisasse dessa desculpa), voltei atrás em uma observação que fiz há 10 anos, quando imaginei o astro original da série como o herói "combalido, cansado da luta". Hoje percebo que perder Mel Gibson foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a "Mad Max": em vez de abraçar a devoção cega ao motor da nostalgia, George Miller pôde olhar sem amarras para o futuro. Um futuro de deslumbre e dor. De reflexão e euforia. De fogo e sangue.
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