Cillian Murphy: 'Obras como 'Pequenas Coisas Como Estas' provocam o debate'
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"Oppenheimer" colocou Cillian Murphy no maior palco de sua vida. O filme de Christopher Nolan posicionou o ator, geralmente discreto e reservado, à frente de um sucesso de US$ 1 bilhão que ainda lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator. Depois da tempestade, contudo, veio a calmaria.
Em vez de emendar "Oppenheimer" com outro projeto gigantesco, Murphy voltou à sua Irlanda natal e rodou o drama "Pequenas Coisas Como Estas", adaptação de US$ 3 milhões do livro de Claire Keegan. A dança dos números é importante para mostrar que são as histórias, e não os holofotes, que alimentam o ator irlandês.
Não que o novo filme tenha sido uma brisa. Ambientado nos anos 1980, "Pequenas Coisas Como Estas" coloca Murphy como um pequeno comerciante que, ao fazer suas entregas em um convento, depara-se com a realidade das Lavanderias de Madalena: do século 18 até o final dos anos 1990, instituições religiosas abrigaram "garotas perdidas" que, abandonadas pela família, eram obrigadas a um trabalho análogo à escravidão em um regime que usava a religião como ferramenta opressora.

O texto de Keegan tem foco no passado do personagem de Murphy, filho de mãe solo que, por sorte, encontrou abrigo ao trabalhar para uma mulher de posses. A descoberta de uma adolescente grávida abusada física e psicologicamente pelas freiras que se posicionavam como pilar de sua comunidade é o gatilho para ele reavaliar suas escolhas.
É sobre essa história, tema de outro filme, "Em Nome de Deus", de 2002, que Cillian Murphy conversou comigo em um longo papo ao telefone (como os astecas faziam) sobre o papel da arte na sociedade, sua admiração por "Ainda Estou Aqui" e o que o futuro da série "Extermínio" nos reserva.
Além de protagonizar "Pequenas Coisas Como Estas", você também assina como produtor. O que você viu no livro de Claire Keegan que o fez buscar sua adaptação como filme?
Bom, o livro é uma pequena obra-prima com um personagem perfeitamente desenvolvido que alude a uma época sugestiva na Irlanda. Mas traz também uma visão política e crítica sobre nossa sociedade, mesmo o fazendo de forma delicada. Eu queria, portanto, tentar fazer um filme que fosse igualmente provocante e delicado.
Como que Matt Damon e sua produtora, a Artists Equity, entraram no projeto?
Foi devido a uma série de eventos. Minha esposa sugeriu que eu adaptasse o livro, eu o levei ao diretor Tim Mielants, depois ao roteirista Enda Walsh, e finalmente a Alan Moloney, meu parceiro na produção. Então tivemos de parar todo o processo porque eu fui filmar "Oppenheimer" com Chris Nolan.
Tínhamos essas cenas noturnas no deserto, e enquanto a equipe preparava a produção Matt me contou como ele e Ben (Affleck) estavam em busca de bons roteiros para a Artists Equity. Eu disse que tinha essa história, mandei o roteiro para ele e depois as coisas aconteceram incrivelmente rápido. Foram parceiros excelentes e, graças a eles, fizemos o filme do jeito que gostaríamos de fazer.
O Brasil ganhou seu primeiro Oscar com o drama "Ainda Estou Aqui" e...
(interrompendo) Eu assisti, é um filme belíssimo!
Que bacana! Bom, então você sabe que é sobre um pai de família assassinado pela ditadura militar que então governava o Brasil. Mesmo hoje, ainda há pessoas que não acreditam que vivemos por décadas sob uma ditadura. Existe um paralelo com "Pequenas Coisas Como Estas", que expõe a questão das Lavanderias de Madalena que muitos na época acreditavam ser benéficas para as meninas que elas acolhiam. Ninguém via a opressão e ignoravam o fato de essas mulheres serem brutalmente abusadas. Minha pergunta é, o quanto a arte é importante para que nós não esqueçamos de assuntos difíceis?
Essa é uma ótima pergunta. Antes de mais nada, essa importância não pode ser mensurada. Eu não posso falar sobre o que ocorreu no Brasil porque desconheço o assunto além do que o filme mostrou. "Ainda Estou Aqui" é muito, muito envolvente, as atuações são brilhantes, a direção idem. Além disso, é um filme que levanta questões. Eu suponho que ele tenha despertado um debate na sociedade brasileira - o que também aconteceu com nosso filme.
É entretenimento, claro, mas fez pessoas se questionarem como e por que essas coisas aconteceram. Até que ponto a sociedade também era cúmplice. Na Irlanda o governo publicou dúzias de relatórios e conduziu diversos inquéritos que resultaram em documentos oficiais enormes. Mas ninguém os lê, sabe? Ninguém lê documentos oficiais, mas as pessoas leem livros e as pessoas vão ao cinema e então as pessoas iniciam discussões. Eu acredito que essa é uma forma mais delicada de encarar questões difíceis.
No Brasil, além de falar sobre o filme, as pessoas também passaram a discutir os casos da época, reabrindo arquivos sobre desaparecidos na ditadura que estavam fechados há décadas.
Isso é incrível! Sensacional mesmo! A arte é muito, mas muito importante.

Eu assisti a "Em Nome de Deus" em 2002 e foi difícil apagar a história da cabeça. Então eu vi seu filme com a mesma combinação de religião, política e opressão que, como sabemos, pode transformar um lar num pesadelo. Hoje ligamos a TV, as coisas estão caóticas e a arte meio que reflete isso. Ainda assim, há quem diga que artistas têm de deixar política de fora de seus filmes. É possível contar uma história sem levar em consideração o mundo ao redor?
Bom, essa é outra pergunta excelente. O que eu tento fazer, mas nem sempre consigo, e colocar um pouco do mundo em cada filme, mesmo que escondido. Nosso trabalho é entreter em primeiro lugar, estamos na indústria do entretenimento, certo? Mas os filmes que eu realmente gosto, ou os livros, ou a música, operam num nível que são entretenimentos que trazem questionamentos nas entrelinhas. Uma obra artística nunca deve trazer respostas, mas ela precisa contrabandear essas perguntas, deve provocar. Fazer filmes assim nem sempre é possível.
Foi complicado trazer essa provocação em "Pequenas Coisas Como Essas"?
Veja bem, foi muito difícil arquitetar um lançamento ideal nos Estados Unidos. Tivemos sucesso na Europa, tivemos muito sucesso no Reino Unido, mas filmes assim estão cada vez mais difíceis de produzir, de ser financiados, de conseguir distribuição. Acho que eles são importantes, e acho também que existem muitos cineastas cujo impulso é contar histórias assim, mesmo com tantos empecilhos. Mas eu acho também que nosso tempo aqui é curto. Se você vai investir seu tempo produzindo um filme, rodando um filme, montando um filme e promovendo um filme, então você poderia muito bem ter algo a dizer com ele.
Lamento que minha esposa não esteja aqui para dizer oi, ela quem me mostrou o livro antes mesmo de eu ver o filme.
Bem, diga oi a ela por mim e que eu agradeço por ela ter lido o livro. (risos)
Olhando um pouco para o futuro, você é produtor executivo em "Extermínio: A Evolução", voltando a trabalhar com (o roteirista) Alex Garland e (o diretor) Danny Boyle. Não vou perguntar se você aparece ou não no filme, quero ser surpreendido!
(risos) Ótimo, obrigado!
O mundo parou cinco anos atrás por causa da pandemia, e eu vejo esse filme mais como presságio do que como mera ficção. Como foi continuar essa história depois de duas décadas?
Foi incrível! Esses caras são absurdamente talentosos e foi ótimo trabalhar com eles de novo. "Extermínio" é muito especial para mim, até porque foi o primeiro filme que eu fiz que as pessoas de fato assistiram. (risos) Eu acho que um bom roteiro pode ser como um oráculo, pode prever o futuro. Lembro que a epidemia de SARS estava estourando na época das filmagens, e estávamos no set quando aconteceram os ataques de 11 de setembro.
Agora, com a pandemia, eu vi um monte de memes e outras bobagens retiradas do filme. No fim tudo se resume a um ótimo texto. O que Alex fez ao reinventar o gênero foi virar tudo de cabeça para baixo e criar um clássico. Os zumbis, que ele descreveu como criaturas muito velozes, não estavam mortos, mas contaminados por um vírus. A expectativa para retornar a esse mundo é enorme, e eu estou muito feliz que Danny trouxe toda a equipe de volta. É muito empolgante!
Obrigado por seu tempo, Cillian, foi bom te rever.
Quando falamos antes?
No lançamento de "Batman Begins" em 2005.
Uau! Bom, espero que a gente possa falar de novo quando lançarem o filme de "Peaky Blinders". Obrigado pela ótima conversa.
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