'Mickey 17' explora a condição humana com Robert Pattinson a granel
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A ficção científica "Mickey 17", de tintas cômicas e recheada de astros hollywoodianos, pode parecer um projeto curioso para Bong Joon Ho após sua vitória no Oscar cinco anos atrás com o ácido e cerebral "Parasita". O diretor sul-coreano, contudo, sabe exatamente o terreno no qual finca os pés.
Apesar do cenário fantástico e do verniz de candidato a blockbuster, seu novo filme flerta com os mesmos temas caros ao cineasta. Lá estão, entrelaçados ao tecido do gênero, uma reflexão mordaz à força devastadora do capitalismo, à diferença abissal entre classes sociais e à redução do ser humano a mera ferramenta de trabalho.
A "ferramenta", no caso, é Mickey Barnes (Robert Pattinson, fincando os dentes no personagem como nunca), sujeito meio lerdo que se vê na bancarrota e devendo os tubos a um agiota cruel, quando seu negócio vai a pique. Para fugir da morte certa, ele se inscreve em uma expedição colonizadora que busca um novo mundo para a raça humana como um "descartável".
Na prática, Mickey se expõe deliberadamente aos perigos de um planeta hostil —seja radiação, vírus ou condições extremas que impossibilitam a vida humana—, morrendo repetidamente para que cientistas se preparem à colonização. A cada nova "morte", seu corpo e memórias são reimpressos num processo de clonagem estranhamente prosaico. Não mais um homem, ele agora é classificado com um número.

Sua situação, longe de ser ideal, complica-se quando, dado como morto após se perder nas cavernas geladas deste novo mundo, Mickey 17 consegue retornar à nave dos colonos para encontrar seu sucessor, Mickey 18, deitado confortavelmente em seu alojamento. No caso de múltiplos, como a trama deixa claro, todos devem ser eliminados.
Riquíssimo em ideias, "Mickey 17" concentra sua jornada nas consequências da "coisificação" de um ser humano, mas abre espaço para versar sobre política e religião, progresso e fanatismo. Os colonos, que olham para Mickey com desprezo, são liderados por Kenneth Marshall, político falastrão (interpretado com um exagero delicioso por Mark Ruffalo) que prega "Deus, pátria e família" às massas mas seus planos para o futuro da humanidade miram unicamente uma elite "pura".
Sua esposa (Toni Collete), por sua vez, mais e mais parece ser quem realmente manipula as cordinhas, ditando as decisões a um líder claramente manipulado. Já a agente de segurança Nasha (Naomie Ackie) é a única que não só se afeiçoa a Mickey, como também questiona as implicações de todo o processo —mas fica fascinada com a personalidade com tendências sociopatas de Mickey 18.

Se a visão criativa de Bong desenha uma história intrigante, "Mickey 17" é também estranhamente contemporâneo ao momento em que o mundo —os Estados Unidos em particular— atravessa. Impossível não enxergar em Marshall um espelho do alucinado e ignorante Donald Trump, reconduzido à presidência e fazendo do exagero do personagem de Ruffalo retrato fiel da realidade.
Sob esse prisma, tudo em "Mickey 17" é gatilho para o abismo no qual o mundo ensaia se jogar. Em meio ao embate entre os múltiplos, Bong expõe o completo desdém que a classe dominante tem pela turma no chão da fábrica, estimulando em discursos messiânicos e culto à personalidade promessas de "fazer a humanidade grandiosa novamente". A invasão a uma terra estrangeira, "limpando" com força militar os nativos pacíficos, também está no cardápio.
Embora a profusão de ideias e o elenco superlativo impulsionem o filme, "Mickey 17" ainda é um trabalho menor na filmografia de Bong Joon Ho. Falta o foco narrativo afiado de "Parasita", a humanidade de "O Hospedeiro" e o ritmo acelerado de "O Expresso do Amanhã". O diretor, porém, mais do que compensa com seu claro entusiasmo em explorar a condição humana sem absolutamente nenhuma amarra, provando no caminho que mais de um Robert Pattinson nunca é demais.
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