Roberto Sadovski

Roberto Sadovski

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

'Flow' traz um gato no fim do mundo em jornada tão bela quanto devastadora

Em um mundo hostil, um gatinho tenta sobreviver à fúria da natureza e, ao longo do caminho, descobre o verdadeiro significado da amizade. Batendo o olho, a trama de "Flow" parece espelhar a fórmula de outras aventuras animadas em que um protagonista fofo embarca numa jornada épica e emerge mais sábio. Enquanto, sei lá, canta alguma música de refrão grudento.

A boa notícia é que essa pérola, criada pelo diretor Gints Zilbalodis, subverte todas as "regras" das aventuras animadas hollywoodianas. No processo, termina como obra de arte que usa o silêncio como linguagem universal. Nada de animais que conversam e exibem expressões humanas, nada de canções pop.

"Flow" é um espetáculo de graça, cores e movimento, mas também uma experiência de imensa introspecção e picos de ansiedade.

Em um mundo há muito esvaziado de seres humanos, um gato busca refúgio em uma casa, dilapidada e cercada por esculturas de felinos, em meio à floresta. Ao fugir de uma matilha de cães em uma de suas explorações, o felino testemunha a força da natureza na forma de uma inundação, que afugenta outros habitantes da mata e rapidamente cobre até a copa das árvores.

Salvo momentaneamente por uma esfera de vidro flutuante, o gato encontra refúgio em um barco "pilotado" por uma capivara. Não tarda para um lêmure juntar-se à dupla, seguido de um labrador e um pássaro secretário —ave de rapina africana que logo toma o leme da embarcação.

A rivalidade torna-se cooperação quando o grupo segue para ruínas de uma cidade milenar que cerca uma torre erguida até as nuvens. Cada momento traz perigos, cada movimento é uma chance para descobertas.

O protagonista felino e fofinho de 'Flow'
O protagonista felino e fofinho de 'Flow' Imagem: Mares Filmes

Neste cenário fantástico, "Flow" se desenvolve regido pelo silêncio e guiado por animais que, veja só, se comportam como animais. Não existe a antropomorfização que reina nos blockbusters animados.

Continua após a publicidade

Existe, contudo, uma comunicação que trafega pelo caminho da empatia, linguagem compartilhada e compreendida entre o protagonista felino e seus companheiros. A costura de Zilbalodis é tão impecável que se torna impossível não imergir em sua narrativa.

O convite para essa imersão é executado com um artesanato que mescla sensibilidade e habilidade técnica invejáveis. Longe das centenas de milhões de dólares empregados em filmes tinindo de tão polidos, "Flow" foi produzido com o Blender, software open source —ou seja, com seu código-fonte aberto e disponível para qualquer usuário— que ocupou uma equipe enxuta de três dezenas de profissionais do estúdio Dream Well, na Letônia, ao longo de pouco mais de cinco anos.

O resultado desse casamento de criatividade e tecnologia, com traços crus e dinâmicos, é sufocante de tão belo, dilacerante em seu retrato de um mundo que existe para além do fim da humanidade.

Ao modular nossa percepção desse mundo, filtrada aqui pelo olhar inocente de um grupo de animais, "Flow" promove uma reflexão sobre vida e morte em um cenário em constante transformação.

'Flow' é uma jornada que se revela uma aventura entre amigos
'Flow' é uma jornada que se revela uma aventura entre amigos Imagem: Mares Filmes

O tom melancólico e agridoce, contudo, não subtrai em nenhum momento seu senso de aventura. Os temas densos podem parecer intensos para um público mais infantil, mas as crianças não terão dificuldade em se encantar com o deslumbre visual e em seguir o fluxo da narrativa silenciosa.

Continua após a publicidade

A jornada deste gato adorável desperta no olhar dos pequenos a beleza de histórias que vão além de heróis e vilões. A princesa se esgoelando com o hit pop da vez não chega perto desse tipo de conexão.

Até porque "Flow" dialoga com questões expostas para fora de nossa janela. A crise climática, conduzida como um épico de proporções bíblicas, dá o tom e imprime urgência.

Ante a força da natureza, disposta a reescrever a topografia de um planeta castigado, o gato e seus companheiros são coadjuvantes, restando-lhes a compreensão de que, no fim do mundo, tudo que temos é um ao outro.

Ao contrário de filmes criados como produtos de massa, que enfeitam prateleiras em lojas de brinquedos, "Flow" prova que o poder da arte está conectado à forma como ela perdura, seus temas e imagens trazendo mais perguntas do que oferecendo respostas.

É nesse espaço que o olhar do gatinho curioso parece sublinhar a importância de cada fagulha de vida, não importa sua pequenez, e o rastro que ela imprime em seu caminho. Uma jornada belíssima que não existe para ser compreendida. Ela precisa ser sentida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.